Roberto Piva.


São poucos os que têm uma fundamentação filosófica sobre a literatura que escreve. Mais pouco ainda são os que possuem uma verdade filosófica sobre o que escreve. A maioria, pega citações soltas, anotadas em suas agendas e bem guardadas em seus bolsos, prontas para serem usadas no momento oportuno, buscando somente o impacto, a boa impressão da frase pronta.

Dentre os que têm uma fundamentação filosófica sobre a literatura que produz, quase cem por cento pensa de uma maneira porque foram convencidos por pensadores de peso. Ou, pensam da forma que pensam para ter o seu lugar no centro. Isto é, para ser aceito. Então, estes escritores levantam bandeiras da democracia, da libertação, dos direitos humanos e advogam por elas.

Não é o que acontece com Roberto Piva. Em seu pensamento filosófico, fica nítido que primeiro ele vivenciou, e depois foi atrás de pensadores e poetas que tiveram o mesmo caminho que o dele. Só para colocar em ordem, digo: primeiro e acima de tudo, a poesia, e depois a fundamentação filosófica. Primeiro o pensamento esotérico, depois o exotérico. Ou seja: um caminho inverso do qual percorreu Platão.

Pois Platão, sabemos, primeiro deixou o seu pensamento explícito (exotérico) na linguagem técnica e truncada da Filosofia, para depois poder explicá-lo, de maneira esotérica e implícita, em seus textos literários. Mas, Platão era filósofo acima de tudo, e principalmente: um filósofo socrático, isto é: um pensador que precisa organizar e sistematizar cientificamente o conhecimento, algo que foi inaugurado por seu mestre e que, infelizmente, ainda define o que é filosofia e o que não é filosofia até os dias de hoje...

Foi o que aconteceu na modernidade, principalmente com os filósofos existencialistas como Sartre e Camus, que colocaram a literatura e a arte em favor de seus pensamentos. Não é isto o que acontece com Piva. Com Piva, repito, acontece o inverso. Primeiro ele se descobre como poeta, e, crente de suas verdades, ciente de que é de uma "tribo", vai atrás de suas origens.
Provavelmente, esta busca surgiu da necessidade de explicar-se, de fazer aquilo que não puderam fazer os críticos de seu tempo, que compreenderam a sua poesia de maneira equivocada. O quê, aliás, parece ter sido ainda um esforço em vão, visto que muitos críticos e pensadores não conseguem acompanhar seu raciocínio: Piva não é fácil.

Estando aquém, Piva vai além. Piva não é fácil. Estando na mão, pensa em contra-mão. Não compreendido, se torna marginal. Não o marginal no sentido simples, pobre ou criminoso. Marginal porque não conseguindo compreendê-lo, a comunidade filosófica o marginalizou. Chamado de arnaquista, colocaram-no no rol dos poetas desesperados, pois, a compreensão de anarquia ainda é superficial para muitos pensadores e críticos.

Quando na pergunta que o repórter da Tv Cronópios lhe faz, se a anarquia é uma crítica desesperada - na ocasião, Piva estava na Balada Literária promovida por Marcelino Freire - ele responde: a anarquia age como uma filosofia da liberdade dentro de qualquer posição que se coloque... Ou seja: como um pensamento que procura a liberdade quando a filosofia/política reinantes tem pretensões de universalidade e totalidade, aonde sempre haverá os desenquadrados, os marginalizados.

Mas Piva não para por aí. A sua revolta é a mesma de Nietzsche contra Sócrates e contra toda a razão ocidental. A sua revolta é contra o Nascimento da Tragédia Humana, cujo Sócrates é protagonista. A sua revolta é a mesma de Jacques Rancière, o qual diz que o pecado é sempre o mesmo, o maldito orgulho apolíneo do conhecimento, que quer esquecer a parte dionisíaca, a parte de sombra que une o mundo mítico e às forças obscuras da vida. Numa palavra: Piva é contra a história de "um" deus.

Uma sociedade que espera por um deus é uma sociedade inocente que se engana por qualquer falso deus. Uma sociedade que tem vários deuses, não se engana por nenhum deles. A compreensão da realidade é outra. É mais ampla. Não existe a opção do "ou este ou aquele", tal como na nossa cultura ocidental cristã monoteísta, e sim a opção do "este e aquele", como é na cultura pagã e oriental.

Portanto, Piva não é só anarquista, mas é aristocrático também. Não é só irracional, alucinado, é racional também. Não é só dionisíaco, é dionisíaco e apolíneo. Não é só poeta. É poeta e filósofo. E enquanto poeta, não escreve apenas torrencialmente, transbordando poesia, mas escreve sinteticamente também, por que não?

Entretanto, para poder compreender Piva, é preciso ser um iniciado, algo que a nossa cultura ocidental compreende como loucura. Aliás, a loucura, em si, para Piva, é algo muito triste, como ele mesmo falou numa entrevista que concedeu a Fábio Weintraub. Sobre isso, diz ele:

A loucura propriamente dita é uma coisa muito triste, horrível. Quando Huizinga fala que o louco, o poeta e a criança têm coisas em comum, ele está pensando na criação artística, na imaginação fértil, propiciatória. A esquizofrenia em si é uma coisa muito triste. Às vezes tomamos por loucura não a "doença mental" especificamente, mas as manifestações do irracional. Aquele impulso para o irracional que, conforme Pasolini, acabou fazendo do Ocidente, que tanto se empenhou em negá-lo, a vítima mais fatal. E temos aí a história que não nos desmente, não é mesmo?
(É o que afirma, por exemplo, o padre Oscar Quevedo sobre o transe do Candoblé e da Umbanda. As razões para este padre considerar os fenômenos da alta espiritualidade como loucura são muitas. Na melhor das hipóteses, podemos levar em consideração de que o padre, coitado, acredita como verdadeira apenas a razão ocidental. Na pior das hipóteses, o que é lamentável - pois passa por cima da honestidade intelectual - é que ele defende interesses pessoais e de sua igreja, sedenta por pobres e pelo dízimo...)

Necessário é ser um iniciado para compreendê-lo, uma vez que é à partir da iniciação que brota toda a sua poesia e o seu pensamento filosófico, sociológico e inclusive pedagógico. Poeta xamã, da alucinação e do delírio, isto é, da mania e da ironia, está mais de acordo com os deuses, como diz Fetro de Platão. Ora, estar de acordo com os deuses é ter humildade para aceitar que eles sabem mais do que nós, meros humanos - e que, como os professores, eles também, quando ensinam, aprendem.

Dessa forma, Piva só pode acreditar na Academia, ou melhor, na Universidade - ele é anti-acadêmico - quando ela se transformar numa coisa viva, isto é, num terreiro de candoblé. Sobre isto, diz ele:
A universidade é o túmulo da poesia. Eu só fiz curso superior para poder dar aula. Não podia lecionar com dois livros publicados. Lecionei por quinze anos. Tudo o que me deram para ler na universidade ou era sucata ou eu já havia lido. Insisto em que as universidades devem ser transformadas numa coisa viva, isso é, num terreiro de candomblé. Com pais-de-santo, ou xamãs, no lugar dos professores, de modo a propiciar aos alunos uma verdadeira iniciação. As universidades precisam de um corpo docente e um corpo indecente (risos).
Os Orixás da Umbanda e do Candoblé condenam o puritanismo; todavia, querem seus filhos de fé limpos. Para isto, todos os Orixás contribuem para o fim último: se Exú manda as crianças se sujarem na terra, Ogum depois os manda se banhar, ficar limpos. É um corpo indecente e outro corpo decente, a fim de que a vida não fique retida, presa em sentimentos neuróticos de pureza e de pré-conceitos.

Assim é a poesia de Piva, funcionando como Exú e Ogum ao mesmo tempo. Transgredindo e reformando. Não negando de maneira alguma o homem, nem mesmo a Deus e aos deuses, pois, o homem que nega o homem, tal como muitos poetas metafísicos fazem, dão o cú no mictórios, tal como ele fala sobre os anjos de Rilke.

É uma poesia e uma filosofia liberadora, que desconfia dos argumentos moralistas, das artes moralistas, de quando querem fazer de Apolíneo um veado. Um poeta e um pensador consciente de sua tarefa, que vem fazer o papel da travessura, assim como os seus Orixás travessos da sombra. Corre junto com o princípio ativo da vida, compreendendo muito bem a grande importância da orgia e da sexualidade na vida humana...
Para ver a entrevista dele na Balada Literária, é só clicar aqui, na TV Cronópios.
Para ver a entrevista dele a Fabio Weintraub, é só clicar aqui, na Triplov.com.
Para ler o ensaio Poeta em São Paulo: a paranóia de Roberto Pivva, de Cláudio Willer, é só clicar aqui, também no site da Triplov.com.

glauberdarocha@hotmail.com

Literatura e Blog

O assunto literatura e blog é bastante discutido na cena literária atual. Desde os escritores que estão fazendo sucesso aqui no Brasil, passando por aqueles que ainda se encontram no anonimato até vecendores do Nobel, como o escritor português José Saramago, não são poucos os que se aventuram na blogosfera, publicando uma coisa ou outra em seus blogs pessoais. Até eu que não sou bobo nem nada ando postando meus contos e algumas crônicas nos meus blogs e em blogs de outros também...
No começo, fui convencido de que blog é uma coisa e literatura é outra. Quem me convenceu disto foi a escritora Clarah Averbuck, que tem um blog chamado “Brasileira Preta”. Diz ela:

"Só pra avisar, eu não respondo perguntas sobre blogs. Eu não dou entrevistas sobre blogs nem participo de trabalhos de faculdade sobre blogs. Eu simplesmente não agüento mais essa baboseira de blogs. Chega. Blog não passa de um meio de publicação. O autor do blog, dono e soberano do blog, faz o que bem entender com seu blog. Não existe literatura de blog. Não existe escritor de blog. Blogueiro não é escritor. Escritor não é blogueiro. Não existe escritor de blog. Existe blog enquanto meio de publicação para um escritor. Escritor é escritor. Escritor não é blogueiro. Não sei nada sobre o fenômeno blog. Sequer acho que seja um fenômeno. Nunca mais respondo nenhuma pergunta sobre blog. Por favor, não me incomodem com essas coisas. Sou uma grávida tensa, isso não faz bem. Sem mais..."

Sensacional, mas serve apenas para impressionar. Pelo menos, ela nos dá uma informação à respeito de quais são as perguntas. Ei-las: existe uma literatura de blog? Uma literatura blogueira? Blogueiro é um escritor? O escritor é um blogueiro? Ou tudo não passa de um sonho dentro do outro?

Muitos críticos literários condenam a literatura produzida em blogs por um motivo apenas: os blogueiros vão publicando tudo o que escrevem, sem revisão, sem esforços, e por isso uma porcariada de literatura "c" vem se proliferando nos meios de comunicação. Se eu fosse eles, prescrevem os críticos, parava de escrever e de publicar em blog o quanto é tempo, antes que a peste acabe contaminando aqueles que além de ter talento, sofrem em infinitas revisões antes de lançar algo num livro impresso e bem bonito, com a marca da Cia da Letras e tudo o mais...

Parece que todo mundo anda confuso, sem saber o que é literatura e o que é blog. Realmente, blog é um meio, mas não apenas isto: é a mesa de bar entre o escritor e seus leitores - "mesa de bar", e não uma bancada, com o autor aqui e os leitores lá, sentados nas cadeiras do auditório...
Nessa mesa de bar, o leitor fica mais à vontade para comentar, sugerir, criticar e inclusive elogiar. É aqui que o escritor deixa de ser solipsista para se tornar comunitário. Ele desce do salto e entra no meio do povo, a fim de sofrer o processo de aprendizado do mundo da vida. Tudo então se transforma: autor, leitor, texto, interpretação e compressão - o texto, em muitos casos, já não é o mesmo.

Não que ele muda necessariamente, mas a visão que o autor tem sobre a sua própria obra se amplia, e o mesmo acontece com os leitores que prestam atenção nos comentários dos outros. Aliás, se o comentário fosse usado com honestidade, uma vez que a maioria dos comentadores são gente falsa que apenas o faz para promover o blog que ele também tem, a literatura produzida em blog melhoraria num grau bem maior...

Em poucas palavras, a literatura produzida em blogs passa por um processo de transformação, antes de ser publicadas em livros impressos ou até mesmo em arquivos pdf. São muitos os textos de escritores que tem um certo sucesso atual que passaram por esta transformação. Gente que não tinha muita idéia do que realmente significava a sua literatura, mas que, através dos comentários, das criticas, das sugestões, foram melhorando a comprenssão que tinham de si.

Mas, isto não é tudo. Aqui falo apenas dos textos prontos, ou, na melhor das hipóteses, que o escritor considerava como acabado. E os textos que desafiam o próprio autor e por conseguinte o leitor também? E aqueles textos que nascem de uma idéia, querem ser escritos, e o autor se propõe fazer ao vivo, de pouco em pouco, ou de capítulo à capítulo?

Ainda não tive essa audácia. Tenho três a quatro romances que só sei o começo, que pode dar muito pano para manga, mas, fazê-los assim, na frente de todo mundo, não sei se teria a coragem. Os leitores vão interferir, vão brigar, vão querer escolher o fim, o assunto do próximo capítulo, vão questionar seus critérios, as suas impulsões... E aí? É o mesmo que dar aula no ensino fundamental e médio. É o mesmo que apresentar uma dissertação ou tese no meio de um bando de intelectuais famintos pela auto-afirmação. É se lançar no morro para ver o que os bandidos e traficantes fazem com a gente...

Portanto, há sim uma literatura de blog. Uma literatura completamente diferente daquela do escritor solipsista que primeiro solitariamente escreve, depois passa para alguns verem e finalmente manda para a editora com toda a defesa necessária. Uma literatura pronta, com direito apenas de elogios e criticas, nada mais. Uma literatura bem diferente da escrita no blog: pronta para o diálogo, pronto para modificar-se, transformar-se, e, quem sabe, dependendo de quem conduz, melhorar-se.

Glauber da Rocha.