A Literatura Brasileira na Blogosfera 3 - Fabrício Carpinejar.


* Para ler a postagem anterior deste assunto "A Literatura Brasileira na Blogosfera", vá em "Literatura na Blogosfera 2 - Ana Maria Gonçalves."


De todos os escritores que falam sobre a experiência que tiveram com a blogosfera, o que mais me impressionou de maneira positiva foi Fabrício Carpinejar. Ao contrário de muitos, que adoram reclamar da falta de leitores e principalmente de dinheiro – sim, literatura não dá dinheiro nem leitores, o que ela dá é um pouco de dinheiro (e isso se o escritor tiver muita, mas muita sorte mesmo) e um pouco de leitores (aqui o mesmo procede) – ele, Fabrício Carpinejar, apenas relatou de maneira realista mas poética o que é a blogosfera para o escritor numa carta que ele escreveu para O Estado de São Paulo.
Eu gostaria de cometer o pecado de transpô-la por inteira aqui, mas ante à tentação, resisto: não posso dar ao leitor tudo de mão beijada. A carta – digo carta porque o texto leva o título de “Epístola aos Blogueiros”, mas poderia ser chamado crônica, ou conto, se quiser – fala exatamente como é a blogosfera para o escritor. E, assim como Paulo falava para os líderes das comunidades primitivas da cristandade – líderes este que ele formou, com a ajuda de Cristo, segundo a Bíblia – Fabrício passa uma mensagem de fé, onde a perseverança é exaltada.
Para Fabrício, o blog é a verdadeira prova para um escritor. Quer saber se você realmente tem vocação para a Literatura? Use o blog enquanto meio de divulgação de sua arte. Se no fim das contas você não conseguir nada com ele, e continuar escrevendo, parabéns: a sua vocação é essa mesma, a de escrever. Pois, o blog, para o escritor, é a sua preparação. Ou melhor: é o seu “Quarenta dias no Deserto”. Veja bem: quarenta dias no deserto, e não o Calvário. Pois, é somente depois do deserto que vem o Calvário, assim como é somente depois do Calvário que vem a Glória. Em outras palavras: quer ser ainda escritor?
Tudo leva a crer que, para um escritor é melhor o Cálvario que o Deserto: no primeiro ao menos há uma multidão em volta. Já no segundo, não há ninguém. O escritor monta o blog, recebe uma injeção de ânimo maior do que os prêmios em certos concursos, acredita que essa ferramenta foi feita para ele, capricha, dá o melhor, revisa e revisa, crente de que agora sim a fama chegará. Mas, posta um texto, posta outro, espera por um comentário, e passa um mês, e passa outro, e nada! É a solidão completa. A vontade de desistir. A fraqueza ganhando proporção. O Davi que virou Golias. O Golias que fica muito maior do que Davi.
Aqui, o escritor pode ter mais de dez anos de escrita, mais de dez anos sonhando com a carreira sólida enquanto escritor: se ele não nasceu para isso, irá desistir. E, se não desistir, ao menos aprende que o escritor deve escrever meramente pelo prazer da escrita, nada mais. Se quem escreve para ser famoso, se alguém escreve para ser rico, é aqui que ele saberá qual é o verdadeiro sentido da literatura. E a sua regra: escreva, sem esperar nada em troca. O resto, é literatura, ou melhor: conseqüência. Ou melhor, o Calvário.
Sim, porque depois da solidão, da angústia do anonimato, vem a evidência para quem não desiste, para quem melhora, para quem revê. E na evidência, impossível é agradar a todos. Nem Cristo que é Cristo conseguiu tal proeza. Então, vem a humilhação, a injustiça, a zombaria, os cuspes, os acoites. As críticas, sim as críticas. Difícil é aceitar as críticas para quem não passou pelo deserto. Fabrício sofrê-las-á. Ninguém está imune, inclusive ele. Pois, o seu convencionalismo e o seu dogmatismo pode até agradar a geração de críticos atual, que vê o poeta metafísico como o poeta dos poetas. Mas não agradará o céptico, o niilista, o sujeito que fica com raiva diante de alguém que tem tanta certeza de que o Paraíso existe, e que há um Senhor regendo todas as coisas.
Aliás, é incrível como essa geração de críticos literários prestam um culto sagrado à Metafísica. Quem faz isso reza, não pensa. Todo e qualquer filósofo sabe muito bem que a Metafísica não foi feita para admirá-la, mas para colocá-la à prova. Metafísica é tortura. E outra: os críticos literários desta geração precisam começar a entender que o conhecimento metafísico não é o saber dos saberes. Eles olham para Heidegger e dizem: nossa, que mistério!, e logo o colocam acima de alguém que inventou a internet, por exemplo. Deus do céu, que povo kantiano anterior a Kant!
O homem não é apenas metafísico: é social, é erótico, é lúdico, é trabalhador, e etc, e etc. Há muita moral num pagão que o metafísico sonha. Você verá que Caeiros não era Mestre à toa, inclusive de seu próprio criador, um metafísico por excelência: enquanto Caeiros, pagão, vivia em harmonia consigo mesmo e com a Natureza, numa felicidade e beatitude fora do comum, Fernando Pessoa foi um homem isolado, triste, de poucos amores e poucos amigos. Portanto, críticos desta geração, é bom parar com essa história de colocar os poetas metafísicos no altar: sejam pois inteligentes, Deus do Céu!
Outro tipo de crítica que Fabrício pode vir a sofrer é quanto ao caráter auto-biográfico de sua obra. A matéria de sua poesia é a vida dele, no fim das contas. É pelo menos o que predomina. A memória e seu fluxo são as seivas de seus poemas, o seu verbo. Fica nítida a impressão de que ele, seu pai e sua mãe vivem as normas celestiais aqui na terra. Paira sobre eles uma espiritualidade espiritista, onde o amor, a caridade, a fé, a humildade são tratados com um respeito demasiadamente cauteloso: violar essas dimensões é uma falta grave, uma transgressão demasiadamente cruel, coisa de gente que não tem religião. Se alguém afirmar que a religião só atrapalha a vida de um homem, eles são obrigados a protestar contra, ainda que Fabrício seja obrigado a ficar sempre no último lugar da fila e suportar calado a ordem do cobrador de ônibus de que é preciso dar mais passos à frente, mesmo que não os haja...
Fora o conteúdo, agora Carpinejar é imune à crítica. Seu estilo, isto é, forma, é algo conquistado com muito esmero. Certa vez E. Levinás disse que para um texto ficar bom é preciso afiá-lo como se afia uma lâmina ao ponto de fazê-la sumir, desaparecer. Carpinejar fala que para um poema nascer é preciso: “desbastar o poema para que só fique o essencial. O verso é como uma escultura: o rosto está lá dentro, sendo preciso para descobri-lo extraindo pedra.”
Poesia não é colocar uma frase debaixo da outra, sabe Fabrício. E isso ele deve ter aprendido muito bem com seu pai e sua mãe, grande poeta e grande poetiza. O pai de Fabrício é nada mais nada menos que Carlos Nejar. E sua mãe, Maria Carpi. Da junção desses dois sobrenomes que surgiu o seu: Carpinejar. Foi ele mesmo quem fez essa união. Ver o pai e a mãe juntos é a vontade de todo bom filho...
No seu trabalho poético, Fabrício procura sempre a metáfora, seja na poesia, seja na crônica. É sempre a parábola indo em direção à frase metafórica, sem esperar o décimo quarto verso para fechar com chave de ouro. Bom poeta, bom cronista. Das crônicas, vale a pena ler “Do lado ou de Frente?”, que fala sobre o amor, sobre casais em restaurantes. Diz ele: restaurante é um observatório do amor.”
Outra boa crônica é a Inundação, cujo tema é a morte. Fora dos trilhos, uma crônica de memórias de sua infância. Boca mole, crônica que fala do relacionamento homem mulher. Um carro casado, outra crônica que fala de relacionamento, mas com ênfase na intimidade entre os casais. Dois canudos, onde ele defende uma tese por qual motivo nós, seres inteligentes, sempre tomamos refrigerante com dois canudos e nunca um apenas, que basta. E há também as crônicas que ele dedica ao seu filho Vicente. Já as poesias, são muitas. Do livro “As solas do Sol”, onde o poeta-personagem chama-se Avalor, há três no seu blog: “Primeira Colina – poema 8” Oitava colina – poema 1” e “Nona Colina – poema 3.
Há também, em seu blog, um poema do livro de poesias “Um terno de pássaros ao sul”, outro do livro “Terceira sede”; do “Biografias de uma árvore”, e do livro “Cinco Marias.” É acessar o blog do poeta Carpinejar e conferir a Carpintanejaria poética desde poeta ora chamado de Colecionador de Silêncios, ora de Poeta da Essencialidade, de Puxador de Sinos, de Novo Velho Poeta e entre tantos outros nomes.

A Literatura Brasileira na Blogosfera.

Um dos meus primeiros contatos com a literatura na blogosfera foi por meio do blog “O Biscoito Fino e a Massa”, de Idelber Avelar. Num de seus post’s, ele explica a grande diferença entre o escritor-blogueiro e o blogueiro-escritor, que são completamente diferentes. Enquanto o primeiro já era escritor antes de ter um blog, e só montou um como meio de divulgação de sua arte, o segundo acabou tornado-se um escritor após a montagem do seu – muitos desses, ao se darem conta, descobriram-se muito talentosos para escrita, já outros, tiveram que aprender escrever caso quisessem sobreviver na blogosfera.Antes de ler este post, o meu pré-conceito com os escritores de blog era a de que eles ou eram adolescentes publicando seus diários ou jovens querendo ganhar a fama por meio da escrita. Era essa a minha opinião, mudada após a leitura do artigo postado por Idelber Avelar em seu “O Biscoito Fino e a Massa.” Por outro lado, tal leitura fora apenas um passo para a mudança de meu conceito quanto aos escritores da blogosfera: o outro foi conferir na prática, saber se esses escritores eram talentosos mesmo ou pessoas que não conseguiram publicar seus livros nas grandes editoras e estavam apelando para o blog.
Com isso, sem querer, acabei me deparando com um universo cheio de questões, e portanto, demasiadamente relevante e pertinente para o futuro da Literatura pós-blog ou a Literatura na Era da Informática. Questões como livro impresso versus livros digitais (e-book), direitos autorais e todas essas perguntas que se faziam quando no inicio da Literatura no Universo da Internet, hoje já são quase que respondidas em forma definitiva. A cada dia que passa, no universo virtual das Letras, surgem novas questões, novas possibilidades, novos horizontes. De fato, é um mundo a ser explorado e pensado, e não é à toa que o filósofo Pierre Lévy já fazia uma reflexão sobre a Internet na sociedade, analisando o mundo na Era da Informática e abstraindo conceitos e apontando diretrizes para uma ética, uma política e o futuro da ciência e da filosofia.Mas, vamos aos poucos. Primeiro surgiu-me a necessidade de averiguar se esses escritores eram bons ou não, se eles estavam ali porque não conseguiram uma editora e estavam dando o tiro de misericórdia. Anotei os nomes dos escritores indicados no blog Biscoito Fino e a Massa: Santiago Nazarián, Ana Maria Gonçalves, Fabrício Carpinejar, Marcelino Freire, Ivana Arruda Freire, Ivana Arruda Leite, Cintia Moscovichi, DanielPellizari, Daniel Galera, Daniela Abade e entre outros.
* Para ver a próxima postagem sobre este assunto "A Literatura Brasileira na Blogosfera", vá em "Literatura na Blogosfera 1 - Santiago Nazarián"

Santiago Nazarian.


* Para ver a postagem anterior deste assunto "Literatura Brasileira na Blogsfera", vá "A Literatura na Blogosfera - Introdução".

O primeiro que encontrei foi Santiago Nazarian. Apesar de jovem, que apesar?! ele escreve como todo escritor deve escrever: o que quer, o que sente, o que deve ser escrito. Seguindo esta intuição própria dos escritores que vêm para ficar, Santiago já escreveu quatro romances, todos publicados pela Editora Record. São eles: O Prédio, o Tédio e o Menino Cego; Mastigando Humanos, Feriado de Mim Mesmo, a Morte sem Nome, e Olívio. Em seu blog, Amor & Hemácias – título bem ao seu estilo e portanto coerente – ele expõe trechos de quatro romances.
O primeiro dele, o surpreendente Mastigando Humanos, conta uma história que aponta para diversas interpretações. O personagem principal é um jacaré. Foi o momento que eu acabei achando um escritor parecido comigo: eu tenho um romance que o personagem principal é um lobo! Mas não só isso. Me identifiquei com a sua linguagem ágil, veloz, envolvendo o leitor em imagens, sons, gostos, e críticas atrás de críticas. De vez em quando, lembra Rimbaud. Só que um Rimbaud atual, que fala de certo símbolos presentes apenas em nossa época, como a camisa do Ramones que Santiago Nazarian faz referência. Um Rimbaud decidido a escrever o que quer escrever, dane-se o resto, o amanhã é depois.
Digo isto porque há muita injustiça contra os jovens escritores. Ninguém pode dizer que a obra de Guimarães Rosa é melhor que a de João Antônio porque o primeiro era mais maduro e o segundo, jovem. Não. Cada qual tem o seu valor pessoal. O que seria uma lástima era ver João Antônio escrever como um velho e Guimarães Rosa escrever como um jovem. Portanto, cada qual tem o seu valor, individual. Agora, você já pensou se João Antônio não publicasse àqueles seus contos de Malagueta, Perus e Bacanaço? E se Álvaro de Azevedo não nos desse a Lira de Vinte Anos? Caso por um motivo ou por outro ele continuasse vivo e mudado de pensamento e de Escola?Não sei se fui claro. Mas o que quero dizer é isso: o jovem escritor, quando talentoso, deve ser apreciado. Não importa se ele não pensa “certo”, se ele está numa Escola que não concordamos, o que importa é a sua arte e ponto. Em “Feriado de Mim Mesmo”, outro texto elaborado por jovem. A personagem-narrador, que parece ser o alter-ego de Santiago, não tem vergonha de relatar a solidão que sente no Dia dos Namorados. Um velho, quem sabe, não faria isso: falaria de solidão, mas não a dele. Ou falaria a dele mas com justificativas, ornamentos, rodeios. Coisa que Santiago não faz: fala direto, do seu jeito, o que sente, o que pensa, e não está nem aí para a crítica, e isto é fundamental.
Já no romance “A Morte sem Nome”, a coragem que Rubem Fonseca não teve, pelo fato de passar a vida inteira falando eu sou espada, eu sou espada, eu sou espada. Eu gosto do Rubem, gosto do Nelson Rodrigues, mas não gosto da idéia fixa. Hoje o novo conceito de inteligência demonstra que quem guarda muito conhecimento, quem fixa muita coisa, é na verdade um burro que empaca. O inteligente não é aquele que se decide para a vida inteira. O inteligente é aquele que está aberto às mudanças, a rever seus conceitos, a sua postura, e movimenta-se, faz de tudo.
E o escritor inteligente faz isso. E a primeira coisa que Santiago fez foi colocar-se a baixo e a favor da arte, em prontidão, e assim, teve a coragem de escrever em primeira pessoa a história de uma personagem feminina. Santiago virou mulher, mas na arte, tal como os artistas fazem nos palcos, vivenciou o outro lado e renovou seus conceitos, o modo de ver o universo feminino.
No romance “Olívio”, o fim de um namoro por um problemazinho insignificante, onde Santiago fala de sexo, mostrando como seus personagens não têm tanta consciência do que são. Isto que é maravilhoso. Já pensou? O escritor sabe que seus personagens são de certa forma prisioneiros, mas escreve sem comentar isso: se fizesse, iria ser uma literatura chata, com personagens cheios de razões, e etc. No fim, ficamos um pouco decepcionado com a forma que as personagens vão tomando decisões. Dá um sentimento de frustração...
Mas, isso acontece porque o autor foi fiel à realidade; e se dermos ouvido e coração para tantos casos amorosos que escutamos por aí, podemos chegar até mesmo na conclusão de que o mundo não presta, que a vida é cretina.
É bom ser jovem, ler jovem. A linguagem de Santiago Nazarian é uma linguagem que vai se apropriando dos objetos, dos seres em sua volta, do pensamento. Faz isso com música, com imagem e com idéias. Excelente escritor, que, a cada ano que passa, a cada romance que publica, vêm ficando cada vez melhor e maduro. Sucesso de publico e de crítica, ler seu livro é garantia certa de uma ótima experiência estética.
* Para ver a próxima postagem da série deste assunto, vá em "Literatura na Blogosfera 2 - Ana Maria Gonçalves.
Glauber da Rocha.

A escritora Ana Maria Gonçalves e a blogosfera.


Agora vou falar de uma escritora que me fascinou deveras. O nome dela é Ana Maria Gonçalves, do blog 100 Meias Confissões de Aninha. Começou a escrever por causa do seu blog – na adolescência, assim como a maioria dos adolescentes, escreveu uma coisa ou outra, nada excepcional, nada de sonhos querendo o estrelato, e por isso não foi adiante. Foi o blog que acabou fazendo de Ana Maria Gonçalves uma escritora de peso na Literatura Brasileira de Hoje Em Dia. Primeiro, confessando uma coisa ou outra, nada de mais, para depois, com o tempo, for pegando gosto pela coisa e começar a sonhar com romances, pesquisas, e profissionalizar-se como escritora.
Quando viu, Ana Maria acabou sendo tal como esses escritores e escritoras que decidem abandonar tudo por causa da Literatura. Gente assim, só pode ir longe. E de fato, é o que todo escritor deve fazer. Porque ter duas personalidades, uma para um trabalho, e outra para o mundo das idéias, com tempo torna-se esquizofrenia. Não dá. É loucura na certa. Eu mesmo, que ainda não ganho o meu pão com a escrita, já estou para lá de louco. No fim das contas, fico sempre sozinho, que nem o Zéfiro. Quem é que gosta de conversar sobre Literatura? Um ou outro...
Ana Maria Gonçalves fez isso: abandonou a sua carreira sólida na área de publicidade, vendeu tudo o que tinha e foi para a Bahia, lugar em que ela nunca havia pisado os pés. Vão vendo a loucura. Lá ela se estabeleceu, deu três meses de “férias para si mesmo”, como diria Santiago Nazarian, e não fez outra coisa senão esquecer o mundo da vida empresarial, que é muito mais louco e absurdo que o mundo das Letras. Descansada, lançou-se à pesquisa, a fim de elaborar seus livros. Ainda na compulsão pró-ativa herdada da vida infernal, não dava folga, não sabia a hora de parar, e até hoje não sabe.Escreveu dois romances: “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim” e “Defeito de Cor”. O primeiro, e do qual falarei aqui, Ana Maria Gonçalves publicou por conta própria, e teve um retorno bem maior do que esperava. Hoje esse romance encontra-se íntegro em seu blog, e vale a pena ler: se a linguagem de Santiago Nazarian é envolvente, eletrizante, fazendo das palavras trilhos para o seu trem criativo, a linguagem utilizada por Ana Maria nesse romance é cativante, delicada, polida, sem pressa. Parece uma dessas mulheres que separa os grãos de feijão na mesa e depois de cozinhá-los e digeri-los deita-se à rede e fica pensando, satisfeita, namorando seus próprios pensamentos.
O romance tem como mote ou tema principal a questão mais austera na Literatura: o amor. Um tema que aparentemente é fácil de ser tratado – e não é à toa que quase todo mundo acredita-se poeta quando ama – mas que no entanto, quando colocado de maneira a não cair no comum, acaba tornando-se muito difícil. Eu mesmo, aliás, nunca ousei tocar nesse assunto: é colocar o título Amor lá em cima da página em branco para ter a certeza de que a primeira frase não sairá.E para falar deste tema, podemos escolher qual visão sobre o amor tomar, pois, há muitas: a machista, a religiosa, a psicanalítica, a filosófica e por aí vai, até o infinito. Ana Maria preferiu à psicanalítica, principalmente àquela que retorna aos gregos, no mito de Narciso. Como conta a lenda, este considerava-se tão bonito, mas tão bonito que um dia, após olhar-se pelo espelho do lago, caiu dentro dele e morreu afogado...
Ana começa então o seu romance com uma “cena do lago”. Não vou referir-me à Ana enquanto pessoa, mas à Ana enquanto personagem-narradora, pois é este o nome da protagonista da história que Ana Maria Gonçalves escreve. Portanto, não vou interpretar o livro como sendo uma auto-biografia, nem que ele tenha traços auto-biográficos, ou que ele seja um livro de memórias, assim como o é Infância, de Graciliano Ramos. Vou interpretá-lo como um livro de ficção, que tem um tom memorial, e que o fato de a personagem-narradora ter o mesmo nome que a escritora não quer dizer necessariamente que a Ana retratada no livro seja a Ana autora.E a personagem-narradora Ana conta que aos dois anos de idade soltou-se da mão de sua mãe e entrou no lago. Aqui, ela quer dizer algo. O quê será? Que foi quando, na desobediência, na teimosia, ela expressou aquilo que ela vinha a ser depois, na fase adulta? Ou que Ana, quando ama, joga-se sem pensar no perigo e nas conseqüências? E que quando ama, na verdade, está amando apenas a si mesmo? Não sei. É sempre muito difícil dizer qualquer coisa a respeito de seu romance, cheio de incógnitas, de nuanças, de mistérios a desvendar.Isto porque ela trabalha com mito, tanto o grego quanto o brasileiro: Ana refere-se a dois mitos nossos: o de Iemanjá, como deusa e rainha do mar, e de João da Draga, um homem que aspirava areia do leito do rio usando uma máquina, abastecendo as construções que se erguiam no vilarejo – este, coitado, enlouqueceu depois de ter “visto” Iara, e a sua máquina, funcionando sozinha, separou o rio Misericórdia em dois: o rio que se segue, e o rio que ficou parado, transformado em lago, um lago que todos chamavam de prainha, a prainha de Niterói, o qual Aninha quase afogou-se.
Esse lago ficava num vilarejo chamado Ibiá, lugar de pouso para os tropeiros de comitivas que vinha de Minas Gerais. Nesse vilarejo que Ana viveu a sua Infância, onde ela conheceu o primeiro amor, um menino de sete ou oito anos no máximo, dois a mais que ela, chamado B., que fez com ela um pacto de sangue jurando matrimônio e amor eterno. Os dois, enfim, acabam tomando caminhos diferentes. Ana vai morar em São Paulo, onde vive a adolescência, faz faculdade e casa-se, divorciando-se depois. Após essa separação, Ana muda-se de volta para Ibiá, atrás do seu primeiro amor, e ali fica esperando por ele – o enredo, em “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim”, é portanto a espera do amor.
Enquanto ela espera, vai vivendo num ciclo entre lembrar e pensar a sua vida, escrever cartas de amor a B. – a qual ela não endereça e nem coloca no correio, porque nem sabe qual endereço – e viver no pequeno vilarejo, misturando-se com o povo, conhecendo gente. Em especial, conhece Zé, e faz uma grande amizade, porque este se parece muito com ela, e uma narcisista, afinal de contas, só pode fazer amizade com quem se parece muito: o Zé, assim como ela, espera por um amor, por uma mulher, especificamente, chamada Lorerei, ou melhor, Mercedes, que era, assim como Zé, artista de circo. O romance dos dois não deu certo, e agora Zé espera por ela, que deve estar lá do outro lado do Continente, do Oceano.Zé é considerado pelo resto do vilarejo como um “doido”. É “doido” porque vive isolado – é narcisista demais também – e faz poesias. Será que os poetas são narcisistas? Não sei, parece que sim. Ou são altruístas demais para sofrerem tanto com uma coisa que não dá privilégio algum? Zé é doido que nem Ana. Talvez, Ana só não é considerada doida porque trabalha, porque ainda se esforça em conviver com os outros, como por exemplo, a dona Isabel, uma espécie de secretária dela.Em suas lembranças e memórias, logo fica nítido a sua personalidade: platônica, romântica, individualista, propensa à solidão.
Numa palavra: a mulher que não conseguiu deixar de ser menina: a eterna princesa à espera do príncipe encantado, da vida encantada, do Perfeito, do Belo. O problema é que nunca as coisas são como ela quer: seu primeiro beijo foi roubado por alguém completamente diferente dela, um moleque bagunceiro, popular, líder de classe, burro. Teve nojo, raiva, revoltou-se. Não porque M. era tudo isso, uma vez que, no final das contas, em seu íntimo, ela gostava. Mas pelo simples fato de que ele não a avisou que lhe beijaria... – se isso aconteceu, não sei: o que sei é que eu nunca avisei nenhuma menina que iria lhe beijar. Ninguém avisa. Ninguém diz: agora vou te beijar... E Ana sabe disto. Contudo, ela queria ser avisada... E aqui está a graça de sua personalidade.
Perdeu a virgindade com C., o seu professor de Matemática. Outra metáfora? E foi nele quem colocou seus primeiros chifres... Mais outra? Aliás, Ana adora metáforas, assim como adora também fazer observações curiosas, como a que aparece logo no início do romance: “as coisas importantes que nos acontecem dependem apenas de um derradeiro segundo, nem mais, nem menos.” Fala também sobre a terça-feira, que não é um dia especial: não é dia para começar nada, ou para terminar algo. Não é dia para casar, nem para parar de fumar ou algo do tipo. Terça feira é o dia mais insignificante da semana...
Ana gosta de usar a metáfora dos trapezistas, e coloca outra observação curiosa: a maioria deles são da mesma família: pai, mãe, irmãos, irmãs. É preciso muita confiança para jogar-se ao outro. Amor é isso. Contudo, Ana joga-se ao amor sem confiar. Não lhe interessa se a pessoa do outro lado do trapézio irá lhe apanhar com a mão forte, segura... Essas e outras curiosidades vão povoando o seu romance, e sempre nos lugares certo, quando o texto pede. Eu poderia falar mais aqui, mas perderia a graça para o possível leitor.Depois que o professor começou a traçar planos para a sua vida, aonde ela teria de deixar de seguir seus sonhos, abriu mão deste. Queria fazer faculdade, e logo após o fim deste namoro, encontramos Ana morando numa república, dividindo o apartamento com outras garotas. É quando descobre definitivamente que prefere viver isolada, que tem gosto pela solidão. Já as outras: sempre animadas, divertidas, promovendo festas. Finalmente, quando ela viu que não dava mais para conviver com muitas pessoas a sua volta, resolveu morar sozinha. Na véspera de sua partida, num barzinho onde foram fazer a festa de despedida, Ana conhece aquele que seria o seu futuro marido, chamado R – se me permite a brincadeira, Ana, no sentido bonito da expressão, deitou-se com o alfabeto inteiro...
O casamento, é claro, não dá certo, e de repente vemos Ana voltando para a terra de sua Infância, onde amou B. Convive com os moradores, interessa-se pelas histórias e estórias do povo, relata os costumes, o sincretismo religioso de Ibá, as supertições, como por exemplo a de que quando um padre e duas freiras rezam durante a travessia da valsa, é azar, pois foi assim num Dois de Junho, quando um barco naufragou e morreu muitas pessoas: nesse dia, havia um padre e duas freiras rezando.Outro mito, ou lenda, é a do peixe-boto. Ana conhece um pessoalmente! Chama-se J. Elegante, educado, do tipo que dá flores. Queria Ana. Mas a dona Isabel, sua secretária, avisou-lhe: é um “boto”, um homem-peixe, que engana as mocinhas inocentes, tirando-lhes a virgindade, engravidando-as, para depois sumir, ou, porque é rico, pagando para elas fazerem o aborto.
No fim do romance, B não aparece. Ela não fica com Zé, não fica com o “boto”, não com R., apesar de ter “casado” com ele. Foi uma relação limpa, ninguém saiu ferido – aqui a personagem-narradora demonstra a sua maturidade – que teve inicio, meio e fim. Fica sozinha, como essas tias solteiras, como um monte de tias solteiras que tem nessa cidade e vivem deixando Santo Antônio de cabeça para baixo, a fim de que este arrumem logo um casamento para elas. Ana acaba só, como sempre gostou de viver. Ana acaba só porque talvez não acredita no amor. O amor, na verdade, assim como para Machado de Assis, só é possível na Infância. Bentinho só amor Capitu, Ana só amou B.
Glauber da Rocha.