Roberto Piva.


São poucos os que têm uma fundamentação filosófica sobre a literatura que escreve. Mais pouco ainda são os que possuem uma verdade filosófica sobre o que escreve. A maioria, pega citações soltas, anotadas em suas agendas e bem guardadas em seus bolsos, prontas para serem usadas no momento oportuno, buscando somente o impacto, a boa impressão da frase pronta.

Dentre os que têm uma fundamentação filosófica sobre a literatura que produz, quase cem por cento pensa de uma maneira porque foram convencidos por pensadores de peso. Ou, pensam da forma que pensam para ter o seu lugar no centro. Isto é, para ser aceito. Então, estes escritores levantam bandeiras da democracia, da libertação, dos direitos humanos e advogam por elas.

Não é o que acontece com Roberto Piva. Em seu pensamento filosófico, fica nítido que primeiro ele vivenciou, e depois foi atrás de pensadores e poetas que tiveram o mesmo caminho que o dele. Só para colocar em ordem, digo: primeiro e acima de tudo, a poesia, e depois a fundamentação filosófica. Primeiro o pensamento esotérico, depois o exotérico. Ou seja: um caminho inverso do qual percorreu Platão.

Pois Platão, sabemos, primeiro deixou o seu pensamento explícito (exotérico) na linguagem técnica e truncada da Filosofia, para depois poder explicá-lo, de maneira esotérica e implícita, em seus textos literários. Mas, Platão era filósofo acima de tudo, e principalmente: um filósofo socrático, isto é: um pensador que precisa organizar e sistematizar cientificamente o conhecimento, algo que foi inaugurado por seu mestre e que, infelizmente, ainda define o que é filosofia e o que não é filosofia até os dias de hoje...

Foi o que aconteceu na modernidade, principalmente com os filósofos existencialistas como Sartre e Camus, que colocaram a literatura e a arte em favor de seus pensamentos. Não é isto o que acontece com Piva. Com Piva, repito, acontece o inverso. Primeiro ele se descobre como poeta, e, crente de suas verdades, ciente de que é de uma "tribo", vai atrás de suas origens.
Provavelmente, esta busca surgiu da necessidade de explicar-se, de fazer aquilo que não puderam fazer os críticos de seu tempo, que compreenderam a sua poesia de maneira equivocada. O quê, aliás, parece ter sido ainda um esforço em vão, visto que muitos críticos e pensadores não conseguem acompanhar seu raciocínio: Piva não é fácil.

Estando aquém, Piva vai além. Piva não é fácil. Estando na mão, pensa em contra-mão. Não compreendido, se torna marginal. Não o marginal no sentido simples, pobre ou criminoso. Marginal porque não conseguindo compreendê-lo, a comunidade filosófica o marginalizou. Chamado de arnaquista, colocaram-no no rol dos poetas desesperados, pois, a compreensão de anarquia ainda é superficial para muitos pensadores e críticos.

Quando na pergunta que o repórter da Tv Cronópios lhe faz, se a anarquia é uma crítica desesperada - na ocasião, Piva estava na Balada Literária promovida por Marcelino Freire - ele responde: a anarquia age como uma filosofia da liberdade dentro de qualquer posição que se coloque... Ou seja: como um pensamento que procura a liberdade quando a filosofia/política reinantes tem pretensões de universalidade e totalidade, aonde sempre haverá os desenquadrados, os marginalizados.

Mas Piva não para por aí. A sua revolta é a mesma de Nietzsche contra Sócrates e contra toda a razão ocidental. A sua revolta é contra o Nascimento da Tragédia Humana, cujo Sócrates é protagonista. A sua revolta é a mesma de Jacques Rancière, o qual diz que o pecado é sempre o mesmo, o maldito orgulho apolíneo do conhecimento, que quer esquecer a parte dionisíaca, a parte de sombra que une o mundo mítico e às forças obscuras da vida. Numa palavra: Piva é contra a história de "um" deus.

Uma sociedade que espera por um deus é uma sociedade inocente que se engana por qualquer falso deus. Uma sociedade que tem vários deuses, não se engana por nenhum deles. A compreensão da realidade é outra. É mais ampla. Não existe a opção do "ou este ou aquele", tal como na nossa cultura ocidental cristã monoteísta, e sim a opção do "este e aquele", como é na cultura pagã e oriental.

Portanto, Piva não é só anarquista, mas é aristocrático também. Não é só irracional, alucinado, é racional também. Não é só dionisíaco, é dionisíaco e apolíneo. Não é só poeta. É poeta e filósofo. E enquanto poeta, não escreve apenas torrencialmente, transbordando poesia, mas escreve sinteticamente também, por que não?

Entretanto, para poder compreender Piva, é preciso ser um iniciado, algo que a nossa cultura ocidental compreende como loucura. Aliás, a loucura, em si, para Piva, é algo muito triste, como ele mesmo falou numa entrevista que concedeu a Fábio Weintraub. Sobre isso, diz ele:

A loucura propriamente dita é uma coisa muito triste, horrível. Quando Huizinga fala que o louco, o poeta e a criança têm coisas em comum, ele está pensando na criação artística, na imaginação fértil, propiciatória. A esquizofrenia em si é uma coisa muito triste. Às vezes tomamos por loucura não a "doença mental" especificamente, mas as manifestações do irracional. Aquele impulso para o irracional que, conforme Pasolini, acabou fazendo do Ocidente, que tanto se empenhou em negá-lo, a vítima mais fatal. E temos aí a história que não nos desmente, não é mesmo?
(É o que afirma, por exemplo, o padre Oscar Quevedo sobre o transe do Candoblé e da Umbanda. As razões para este padre considerar os fenômenos da alta espiritualidade como loucura são muitas. Na melhor das hipóteses, podemos levar em consideração de que o padre, coitado, acredita como verdadeira apenas a razão ocidental. Na pior das hipóteses, o que é lamentável - pois passa por cima da honestidade intelectual - é que ele defende interesses pessoais e de sua igreja, sedenta por pobres e pelo dízimo...)

Necessário é ser um iniciado para compreendê-lo, uma vez que é à partir da iniciação que brota toda a sua poesia e o seu pensamento filosófico, sociológico e inclusive pedagógico. Poeta xamã, da alucinação e do delírio, isto é, da mania e da ironia, está mais de acordo com os deuses, como diz Fetro de Platão. Ora, estar de acordo com os deuses é ter humildade para aceitar que eles sabem mais do que nós, meros humanos - e que, como os professores, eles também, quando ensinam, aprendem.

Dessa forma, Piva só pode acreditar na Academia, ou melhor, na Universidade - ele é anti-acadêmico - quando ela se transformar numa coisa viva, isto é, num terreiro de candoblé. Sobre isto, diz ele:
A universidade é o túmulo da poesia. Eu só fiz curso superior para poder dar aula. Não podia lecionar com dois livros publicados. Lecionei por quinze anos. Tudo o que me deram para ler na universidade ou era sucata ou eu já havia lido. Insisto em que as universidades devem ser transformadas numa coisa viva, isso é, num terreiro de candomblé. Com pais-de-santo, ou xamãs, no lugar dos professores, de modo a propiciar aos alunos uma verdadeira iniciação. As universidades precisam de um corpo docente e um corpo indecente (risos).
Os Orixás da Umbanda e do Candoblé condenam o puritanismo; todavia, querem seus filhos de fé limpos. Para isto, todos os Orixás contribuem para o fim último: se Exú manda as crianças se sujarem na terra, Ogum depois os manda se banhar, ficar limpos. É um corpo indecente e outro corpo decente, a fim de que a vida não fique retida, presa em sentimentos neuróticos de pureza e de pré-conceitos.

Assim é a poesia de Piva, funcionando como Exú e Ogum ao mesmo tempo. Transgredindo e reformando. Não negando de maneira alguma o homem, nem mesmo a Deus e aos deuses, pois, o homem que nega o homem, tal como muitos poetas metafísicos fazem, dão o cú no mictórios, tal como ele fala sobre os anjos de Rilke.

É uma poesia e uma filosofia liberadora, que desconfia dos argumentos moralistas, das artes moralistas, de quando querem fazer de Apolíneo um veado. Um poeta e um pensador consciente de sua tarefa, que vem fazer o papel da travessura, assim como os seus Orixás travessos da sombra. Corre junto com o princípio ativo da vida, compreendendo muito bem a grande importância da orgia e da sexualidade na vida humana...
Para ver a entrevista dele na Balada Literária, é só clicar aqui, na TV Cronópios.
Para ver a entrevista dele a Fabio Weintraub, é só clicar aqui, na Triplov.com.
Para ler o ensaio Poeta em São Paulo: a paranóia de Roberto Pivva, de Cláudio Willer, é só clicar aqui, também no site da Triplov.com.

glauberdarocha@hotmail.com

Literatura e Blog

O assunto literatura e blog é bastante discutido na cena literária atual. Desde os escritores que estão fazendo sucesso aqui no Brasil, passando por aqueles que ainda se encontram no anonimato até vecendores do Nobel, como o escritor português José Saramago, não são poucos os que se aventuram na blogosfera, publicando uma coisa ou outra em seus blogs pessoais. Até eu que não sou bobo nem nada ando postando meus contos e algumas crônicas nos meus blogs e em blogs de outros também...
No começo, fui convencido de que blog é uma coisa e literatura é outra. Quem me convenceu disto foi a escritora Clarah Averbuck, que tem um blog chamado “Brasileira Preta”. Diz ela:

"Só pra avisar, eu não respondo perguntas sobre blogs. Eu não dou entrevistas sobre blogs nem participo de trabalhos de faculdade sobre blogs. Eu simplesmente não agüento mais essa baboseira de blogs. Chega. Blog não passa de um meio de publicação. O autor do blog, dono e soberano do blog, faz o que bem entender com seu blog. Não existe literatura de blog. Não existe escritor de blog. Blogueiro não é escritor. Escritor não é blogueiro. Não existe escritor de blog. Existe blog enquanto meio de publicação para um escritor. Escritor é escritor. Escritor não é blogueiro. Não sei nada sobre o fenômeno blog. Sequer acho que seja um fenômeno. Nunca mais respondo nenhuma pergunta sobre blog. Por favor, não me incomodem com essas coisas. Sou uma grávida tensa, isso não faz bem. Sem mais..."

Sensacional, mas serve apenas para impressionar. Pelo menos, ela nos dá uma informação à respeito de quais são as perguntas. Ei-las: existe uma literatura de blog? Uma literatura blogueira? Blogueiro é um escritor? O escritor é um blogueiro? Ou tudo não passa de um sonho dentro do outro?

Muitos críticos literários condenam a literatura produzida em blogs por um motivo apenas: os blogueiros vão publicando tudo o que escrevem, sem revisão, sem esforços, e por isso uma porcariada de literatura "c" vem se proliferando nos meios de comunicação. Se eu fosse eles, prescrevem os críticos, parava de escrever e de publicar em blog o quanto é tempo, antes que a peste acabe contaminando aqueles que além de ter talento, sofrem em infinitas revisões antes de lançar algo num livro impresso e bem bonito, com a marca da Cia da Letras e tudo o mais...

Parece que todo mundo anda confuso, sem saber o que é literatura e o que é blog. Realmente, blog é um meio, mas não apenas isto: é a mesa de bar entre o escritor e seus leitores - "mesa de bar", e não uma bancada, com o autor aqui e os leitores lá, sentados nas cadeiras do auditório...
Nessa mesa de bar, o leitor fica mais à vontade para comentar, sugerir, criticar e inclusive elogiar. É aqui que o escritor deixa de ser solipsista para se tornar comunitário. Ele desce do salto e entra no meio do povo, a fim de sofrer o processo de aprendizado do mundo da vida. Tudo então se transforma: autor, leitor, texto, interpretação e compressão - o texto, em muitos casos, já não é o mesmo.

Não que ele muda necessariamente, mas a visão que o autor tem sobre a sua própria obra se amplia, e o mesmo acontece com os leitores que prestam atenção nos comentários dos outros. Aliás, se o comentário fosse usado com honestidade, uma vez que a maioria dos comentadores são gente falsa que apenas o faz para promover o blog que ele também tem, a literatura produzida em blog melhoraria num grau bem maior...

Em poucas palavras, a literatura produzida em blogs passa por um processo de transformação, antes de ser publicadas em livros impressos ou até mesmo em arquivos pdf. São muitos os textos de escritores que tem um certo sucesso atual que passaram por esta transformação. Gente que não tinha muita idéia do que realmente significava a sua literatura, mas que, através dos comentários, das criticas, das sugestões, foram melhorando a comprenssão que tinham de si.

Mas, isto não é tudo. Aqui falo apenas dos textos prontos, ou, na melhor das hipóteses, que o escritor considerava como acabado. E os textos que desafiam o próprio autor e por conseguinte o leitor também? E aqueles textos que nascem de uma idéia, querem ser escritos, e o autor se propõe fazer ao vivo, de pouco em pouco, ou de capítulo à capítulo?

Ainda não tive essa audácia. Tenho três a quatro romances que só sei o começo, que pode dar muito pano para manga, mas, fazê-los assim, na frente de todo mundo, não sei se teria a coragem. Os leitores vão interferir, vão brigar, vão querer escolher o fim, o assunto do próximo capítulo, vão questionar seus critérios, as suas impulsões... E aí? É o mesmo que dar aula no ensino fundamental e médio. É o mesmo que apresentar uma dissertação ou tese no meio de um bando de intelectuais famintos pela auto-afirmação. É se lançar no morro para ver o que os bandidos e traficantes fazem com a gente...

Portanto, há sim uma literatura de blog. Uma literatura completamente diferente daquela do escritor solipsista que primeiro solitariamente escreve, depois passa para alguns verem e finalmente manda para a editora com toda a defesa necessária. Uma literatura pronta, com direito apenas de elogios e criticas, nada mais. Uma literatura bem diferente da escrita no blog: pronta para o diálogo, pronto para modificar-se, transformar-se, e, quem sabe, dependendo de quem conduz, melhorar-se.

Glauber da Rocha.


Hoje vou falar da escritora Ana Paula Maia, autora dos livros "Habitantes das Falhas Subterrâneas", "Sexo, Drogas e Tralalá", "Entre Rinhas, Cachorros e Porcos Abatidos". Olha o que diz o autor do site "Click (In)Versos" sobre essa promissora escritora na cena da literatura brasileira e mundial:

"Uma mulher que escreve com uma voz masculina e mancha o papel com a violência dos meninos que povoam seu imaginário. Uma moça certinha que esconde uma escritora punk, um texto ácido e um humor leve. Ou seja, uma bastarda, como ela mesma se considera, que te arrasta para o lado avesso do cotidiano, para os lugares que poucos gostam de frequentar".

Estranho, não? Uma mulher que escreve com voz masculina e mancha o papel com a violência dos meninos que povoam o seu imaginário... Mas é exatamente isto. Ela disse que já tentou escrever com a voz feminina, num conto, mas, ao ler o que escreveu, percebeu nele a voz de homem. Depois disto, nunca mais se aventurou, e continua escrevendo como se fosse um, povoando a sua narrativa com meninos cruéis.

Ana Paula Maia possui uma narrativa agressiva, violenta, mas com uma certa leveza. Diz que a maioria das histórias que ela conta vem de seus sonhos/pesadelos, onde ela sempre é a vítima. Então ela fica pensando sobre isso, e quando o cotidiano lhe exige algo a mais, põe no papel tudo o que sonhou.

Começou escrevendo um roteiro para um curta-metragem, depois, escreveu o "Habitantes" em dois meses e meio. Não sabia se ia chegar em algum lugar como escritora, mas escrevia. Assim que acabou o romance, mandou para as editoras, sem ter alguma resposta positiva. Então, uma pessoa lhe indicou para a 7 Letras, e seu livro foi publicado.


Depois, participou de algumas antologias, como a famosa "As 25 mulheres que estão fazendo literatura brasileira". Participou também de uma antologia italiana chamada Sexy in Bossa e da antologia "Contos Sobre Tela".


Enquanto era publicada, Ana Paula Maia escrevia o seu "Guerra dos Bastardos". Neste tempo, Fábio Fabretti lhe sugeriu escrever um livro de micro-contos. No começo ela não gostou da idéia, porque gosta de escrever bastante, mas, resolveu aceitar o desafio, e acabou escrevendo o "Sexo, Drogas e Tralálá".

O Entre Rinhas, Cachorros e Porcos Abatidos é uma novela que ela escreveu na internet, é o seu Folhetim Pulp, como costuma dizer. Primeiro, foi publicado os seus três primeiros capítulos na revista Sexy in Bossa com o título: Não deve se meter em porcos que não te pertencem. Depois, quando ela criou o seu blog, o Killing Travis, ela postou o Entre Rinhas, Cachorros e Porcos Abatidos, que é uma história violenta e difícil de digerir, com certas sátiras políticas.

No seu blog, Killing Travis, tem três contos que se pode ler de graça. São narrativas curtas, rápidas, com nítida estética contemporânea, que são os: "32 Dentes", "Teu sangue em meus sapatos engraxados", e "Nós, os excêntricos idiotas". Num deles, Ana Paula Maia dedica seu contos a Santiago Nazarián, nosso autor já conhecido neste blog. É ler e conferir o talento desta escritora com jeito de menina por fora e escritora punk por dentro, ou será vice-versa?

Glauber da Rocha. Não se esqueçam de mim também, lendo o "Muita Ironia e Pouca Vergonha na Cara."

poema de abertura

I

Agora que já não consigo mais tampar a boca do vulcão em final de ciclo, eu saio de cima do topo e corro da explosão de fogo entre lavas e chamas que primeiro sobe ao céu, saundando-o, e depois desce à terra para realizar toda a sua varredura astral.

Desçam!, ó lavas em chamas, e queima toda a cidade que te ignorou! Derrube casas, varre ruas juntos com a iluminação elétrica, e entre nas redes de esgoto para acabar com tudo o que há de mais podre e fétido!

Nade nos rios, mate os peixes já apodrecidos, aniquile as algas e volte para a avenida onde os humanos se encontram desesperados. Abraze e lance chama nos corações dos homens endurecidos; entre no meio das pernas das mulheres prostituídas, e nos bancos em que os corruptos depositam seus roubos e faça uma fornalha verdadeiramente santa!

Queime tudo! Não deixe nada que mereça ser impune! Seja maior que a destruição de Sodoma e Gomorra! Fique na História dos maiores estragos da Natureza! E depois, ah, e depois cesse, para que a chuva regida por Vênus caia e limpe toda a sujeira...

II

Eu olhei para a face mais maravilhosa do Verbo!
E somente quem passa por esta grande experiência,
pode ter o agnosticismo por Filosofia,
e o Deísmo como crença!

Senhores, sabe muito pouco a ciência que odeia o Mistério
e não compreende os símbolos místicos...

Eu mesmo passei por nove anos construindo a mesma casa,
para depois concluí-la e abrir as portas.

Vejam agora, o piso é liso, o carpete é Árabe, e as cortinas, indianas...

O que era apenas areia, cimento e tijolos são agora parecidos com o pão, o vinho e a planta, aquela da Amazônia...

Foram nove anos, Senhores! a jornada cujo início foi batizada por luzes e que me conduziu para um deserto de sofrimento e jejum.

Eu venho de uma espiritualidade demasiadamente forte...

III

De vez em quando eu preciso descer nas profundezas inferiores
e tomar um trago do veneno que oferece o próprio Diabo
para não esquecer que sou filho do Pecado
e que a minha condição é categoricamente humana....

São os senhores que brigam de espada.
São os desbravadores que abrem os terrenos à base de foice,
e os agricutores que trabalham na enxada.
O índio não quer ser cacique à toa.
E para cada mulher bonita e sensual
há em volta sete homens.

Beba pois, e torne-te um malandro!
Levanta a tua guarda e sorria!
Os pobres e miseráveis não usam a inteligência nem a força...

Tenha o que é teu,
Seja o que você é,
Para depois, ter o pleno direito de levantar louvores
e dar a Deus o que é de Deus, oh santo guerreiro...


Glauber da Rocha.

poema de agradecimento.

Oh Senhor Deus do Universo Inteiro; agradeço-te por me deixar nascer nesta Terra de falsos profetas, pastores mercenários e lobos vestidos de peles de cordeiro...


Sim, ó Senhor do Universo, sou muito grato por viver numa Terra de políticos corruptos, de empresários gananciosos, de gente assassina e cruel. Do contrário, oh Senhor, jamais teria tido a chance de morrer a cada dia de sede e de fome, jogado nos corredores da Santa Casa como um moribundo órfão de pai mãe e padrinhos...

Oh, Jesus, agradeço por poder presenciar a arrogância e o egocentrismo da maioria das pessoas, metidas em seus carros de luxos e casrões com mil cercas elétricas e doze mil doberman's furiosos.

Agradeço tudo isto, oh Senhor

Hoje, Senhor, a lua nasceu bonita.

Glauber da Rocha.

Ana Paula Maia.

Escrevi sobre a escritora Ana Paula Maia, e publiquei no blog "A Literatura na Blogosfera". Em breve, escreverei sobre ela aqui também.

A chave de Casa, de Tatiana Salem Levy


Eu pensei que ia demorar um pouco para postar mais algum texto sobre a literatura brasileira, até mesmo porque dois dias atrás publiquei um sobre o escritor pernabucano Marcelino Freire e que provavelmente ainda ninguém leu: tomara, oh Deus tomara que algum dia as pessoas leiam e acompanhe este blog.
Mas eis que navegando na internet e nos blogs, me deparo com esta jovem escritora, linda e magnífica tanto por fora quanto por dentro. Vejam o olhar dela. Não preciso dizer mais nada, no que se diz a sua beleza física. Quanto a sua beleza meta-física, ou seja, para além do físico, tenho muito a dizer.
A jovem escritora, chamada Tatiana Salem Levy, ganhou nada mais nada menos que o prêmio São Paulo de Literatura na categoria de O Melhor Livro do Ano na condição de Estreiante, com o seu romance "A chave de Casa". Nascida em Lisboa, vindo para o Brasil aos nove meses de idade, com ascendência judia, portuguesa e turca, ela escreve um dos melhores romances da literatura judaica brasileira, ao lado de escritores como Moacyr Scliar, Cíntia Moscovitch e Samuel Rawet.
O enredo do livro é a sua missão, incumbida por seu avô, de ir à cidade de Esmirna, na Turquia, para encontrar a sua casa deixada para trás quando tiveram que se exilar no Brasil. A casa e os parentes. A personagem-narradora vai, e no caminho, e na sua estádia e em seu regresso, ela vai se perguntando sobre a sua identidade no mundo: quem sou eu? A questão não consiste em saber qual "raça" ou "nacionalidade", e sim saber "quem" ela é. Portanto, uma questão existencial.
Sobre o livro de Tatiana Salem, diz o poeta Moacir Amâncio no jornal O Estado de São Paulo: "é preciso avisar: não se trata de um livro "típico" cheio de folclore, curiosidades e outros temperos turísticos. Há material étnico no romance, mas isso em função dos questionamentos existenciais que a escritora propõe. Um questionamento feito a partir da errância que marcou o passado da narradora. Descendente de judeus sefarditas da Turquia, cujo ancestrais foram expulsos de Portugal pela inquisição, ela revive no âmbito da família o legado de exílio e segurança a partir da dificuldade de entender a articulação da identidade do indivíduo com o grupo e o conceito do nacional. Em suma, o que é existir de fato, além das ficções ideológicas?"

E sobre a sua estética, diz ainda Moacir Amâncio: "Salém concebeu um painel que se sintetiza na voz da narradora e nas vozes que ela cria e torna suas, confundindo-se com elas. Um rercurso hábil, que lhe permite lidar de modo desenvolto com as diferentes personagens e camadas de espaço e tempo" - para ver este artigo completo, vão no site Germina Literatura.

Mas, voltando à escritora. Ela, além de romancista é contista, tradutora de obras literárias inglesas e francesas e doutora em Estudos da Literatura. Já havia publicado um livro teórico: "A experiência de fora: Blanchot, Foucault e Deleuze", e contos na revista "Ficções 11", nas antologias "Paralelos", e em "25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira". Como vencedora do prêmio São Paulo de Literatura, embolsou 200 mil reais e está escrevendo um outro livro. Além de sua exuberância, a sua voz é linda também. Quem quiser ouvi-la, é só ir em: Letras e Leituras.
Glauber da Rocha.

Marcelino Freire, um pernabucando porreta que dá "gostio" de ler.


Outro autor que vale à pena ler é: Marcelino Feire, pernambucano porreta, arretado, que mora em São Paulo desde os 23 anos, onde ele se sente terrivelmente estrangeiro. Ele, por ser de fora, preferiu o olhar dos pernabucanos e dos nordestinos sobreviventes do grande caos que é São Paulo. Incorporando as suas personagens em primeira pessoa, como quem não escreve mas atua em cima do palco, a sua narrativa é uma espécie de dialeto nordestino misturado com o dialéto paulista e paulistano, carregada de palavrões, repetições, num ritmo perfeitamente poético, que faz dele não um jornalista urbano, mas um estéta da pobreza, da miséria e da exclusão social.

Sobre a sua estética, diz Cláudia Fabiana no Sararau: “Seus Contos Negreiros” me prenderam desde o primeiro instante, levei-os para a sala de aula, para as rodas com amigos, e a cada leitura crescia o impacto da linguagem direta, da pontuação cotidiana, do silêncio significante. Como pequenos socos no estômago que, em uma sequência permanente, machucam pra valer, os contos são curtos, grossos e cantam em tom irônico-mordaz histórias de um Brasil nada heróico.

Agraciado com o prêmio Jabuti, com o seu livro de contos “Contos Negreiros”, publicado pela Record, vem alcançando sucesso de público e é claro, de crítica; ganhando grande destaque na cena literária brasileira atual. Além dos seus livros “Angu de Sangue”, Balé Ralé” e “Racif - Mar que Arrebenta”, ele aparece em antologias de autores como nos livros “Geração 90″ e os “Transgressores”. Ainda, é o organizador da antologia “Os Cem Menores Contos Brasileiros”.

Tem 41 anos de idade, e não perde tempo. Quanse não para em casa, vive “passeando”, como dizem os amigos, envolvido em realizações de projetos literários, como a “Coleção 5 Minutinhos”, onde ele inaugurou o selo eraOdito. É organizador do “Balada Literária”, evento já em sua terceira edição.

Sobre o seu terceiro trabalho enquanto escritor - o primeiro é o de escrever, o segundo, o de conseguir uma editora, e o terceiro, é divulgar-se - diz ele, no site JB online: “é preciso sair do casulo, lançar mãos à obra. Atrás de leitor, o escritor pernambucano vai, jura, até a velório, se o chamarem – porque, em tempos de “celular que apita, toca, fotografa, faz a barba”, o jeito é batalhar a atenção do público, custe o que custar.”

* é um dos editores da PS: SP, revista de prosa e mantém um blog: eraOdito.

Veja a entrevista de Marcelino Freire no Encontros de Interrogação:

Glauber da Rocha.

A Literatura na Blogosfera 4 - Daniel Galera.


Daniel Galera é um dos precursores do uso da internet para a Literatura. Escritor e tradutor, tem 13 livros publicados e quatro livros escritos. Em suas traduções, predomina-se a sua preferência por escritores norte-americanos e ingleses da nova geração. Em seus livros, um de contos e três romances, predomina-se a temática existencialista, ou seja: seus personagens são geralmente pessoas passando pelo problema do ser e não ser – além da dificuldade que encontram para se firmarem na vida.

O seu livro de contos chama-se Dentes Guardados, e encontra-se disponível gratuitamente em seu blog Rancho Carne. Vale lembrar que ele é o idealizador da editora Livros do Mal, hoje extinta, junto com os escritores Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Quando concretizaram a editora, não tinham a intenção de se tornarem famosos e ricos, ou de conseguirem chamar a atenção de uma grande editora, mas apenas de serem lidos. Dentes Guardados foi editado por esta editora.

Daniel Galera foi colunista fixo do fanzine eletrônico Cardosonline, que revelou a escritora Brasileira Preta, isto é, Clarah Averbuck e o escritor Daniel Pelizzari. Hoje, dedica-se unicamente à Literatura, escrevendo e traduzindo. Em seu blog, Carne Rancho, não escreve desde 2007. É escritor da Compainha de Letras desde 2006, quando publicou seu romance: Mãos de Cavalos. Seu último livro, Cordilheira, faz parte do projeto Amores Expressos, desta mesma editora.

Antes destes dois romances, Daniel Galera ainda publicou o seu “Até o dia em que o Cão Morreu”, livro adaptado pelo cinema, ganhando o título de “Cão sem Dono”, dirigido por Beto Brant sob a colaboração de Renato Ciasca. Sem dúvida alguma, é um escritor que merece ser lido.

* Daniel Galera é vencedor do prêmio Machado de Assis de Romances.

Amor Verdadeiro

– Não, não. Você não quer casar comigo porque me ama. Você quer casar comigo para não dizer que não conseguiu alguém, para você poder mostrar para as suas amigas que tem um homem, nada mais que isso.
– Eu juro, amor, que quero casar com você porque eu te amo.
– Mas logo eu, Priscila? Tem tantos caras bons por aí. Gente que não fuma, não bebe, não faz besteiras. Você é uma mulher bonita, morena, tem os olhos verdes, pode conseguir o homem que quiser. Por que eu?
– Não sei por que você. O que eu sei é que te amo, Guilherme, e quero você, quero ser sua mulher, sua esposa, a mãe de seus filhos.
– Agora você disse tudo. Você quer ser mãe, é isso e só isso. Você quer ter um homem para te levar nos finais de semana para a casa do seu pai e mostrar para todos os seus parentes que você conseguiu casar, que você não é como a maioria das suas irmãs, primas e tias, é isso.
– Não, não é isso, Guilherme. Eu quero casar com você porque eu te amo.
– Me ama?
– Muito.

– E se eu não puder te dar filhos? Você sabe, eu tenho apenas um coco no saco, o médico me disse que posso não ter filhos, e se eu não puder de dar uma criança, hein? Você vai querer ficar comigo mesmo assim?
– Por toda lei, eu vou.
– Olha, Priscila, eu fumo, e fumo um cigarro atrás do outro, e mesmo assim você ama um homem que fede à nicotina a metros de distância?
– Sim.
– Meu Cristo! Priscila, eu sou um sujeito nervoso. E se eu chegar um dia em casa, com raiva de todo mundo, do meu chefe, das pessoas que me olham feio na rua, das ofensas que me dizem por aí, e eu chegar em casa e quebrar tudo, bater em você? Você vai continuar comigo?
– Eu te amo.
– Me ama, me ama! Meu Deus do céu, como você pode amar um sujeito como eu? De vez em quando eu me injurio, abandono o emprego, deixo o chefe na mão, e fico meses em casa, sem fazer porra nenhuma, só na frente da televisão, tomando conhaque e fumando... Tem vez que estou tão revoltado que até pasta base eu fumo. Você sabe o que é isso, pasta base?
– Sei.
– Sabe mas não deve saber tudo. A pasta base é o lixo da cocaína. É uma droga dos Infernos. Foi o próprio demônio que a fez. Quem fuma, fica endemoniado, feio mesmo, e se eu fumar pasta base e querer dar uma surra em você, quebrar a casa inteira, mesmo assim você vai continuar casada comigo?
– Vou.
– Meu Deus. Eu não presto... Eu bebo, eu fumo, sou um porcaria. E se um dia der cirrose em mim e eu acabar doente, em cima da cama, sem poder trabalhar, sustentar a casa, você vai ficar comigo mesmo assim?
– Eu cuido de você.
– E a casa?
– Eu cuido da casa.
– Você é capaz de trabalhar fora?
– Sou capaz até de mendigar por você, amor.

– Meu Cristo. Eu fumo. Você vê o tanto que eu fumo. E sabe o que o cigarro dá? Dá câncer, Priscila. Vamos supor que eu tenha um câncer, uma enfisema pulmonar, e o meu pulmão estourar de repente, manchar o lençol da cama com sangue, você vai ficar ao meu lado? Não vai pular o fora?
– Jamais.
– Jamais?
– Nunca.

– Olha, eu bebo e fumo. E quem bebe e fuma pode ficar impotente, pode virar brocha. Você é capaz de ficar com um homem brocha dentro de casa? Você vai me amar mesmo se eu não der no couro?
– Eu quero casar com você, Guilherme.
– E se eu te botar chifres, hã? Mulher nenhuma gosta disto. Principalmente se o homem não consegue cumprir às obrigações dentro de casa. E se um dia eu estiver desempregado a um ano e ainda por cima botar um par de chifres bem grandes em sua cabeça, mesmo assim você vai continuar comigo? Vai, Priscila?
– Vou, eu já disse que vou, Guilherme!
– Mesmo se de repente eu for atropelado e ficar paraplégico?
– Mesmo.
– Mesmo se eu ficar em cima de uma cadeira de rodas?
– Mesmo.
– Mesmo se eu for preso, e você ter que ir me visitar lá na Penitenciária Máxima?
– Sim.
– Mesmo se eu resolver apostar tudo o que tivermos numa mesa de baralho?
– Mesmo.
– Você só pode ser uma louca!
– Sou louca sim, e por você, amor.

– E se eu me matar, hã? E se um dia eu quiser pegar uma faca bem afiada, com essa aqui, e cortar meus pulsos, hein? Você vai me respeitar se eu morrer? Vai ficar viúva para sempre, sem se casar de novo?
– Guarda essa faca, meu amor. Eu já te disse que te amo.
– Você me daria a sua orelha?
– Como assim?

– Certa vez ouvi a história de um homem que era pintor e amava uma mulher. Certa vez ele cortou a orelha, colocou numa caixa e deu de presente para a amada dele. Você seria capaz de fazer isso por mim?
– Seria.
– Toma aqui a faca. Corta ela e me dá. Vai, anda, eu estou mandando.
– Mas, amor, eu vou ficar feia, sem uma orelha.

– Não me importa a beleza. Vai, quero ver se você é capaz de provar que me ama. Corta a orelha.
– Certeza, amor?
– Toda.

– Então está bem. Vou cortá-la. Aí, dói, mas eu vou cortá-la. Eu corto a minha orelha e te dou. Aqui, mas está doendo...
– Coragem!
– Ai!

– Pára, pára, está bom, Priscila. Você já provou que me ama. Daqui essa faca. Vou guardá-la. Vou me casar com você. Você é a mulher da minha vida. Não me recusaste a tua orelha. Você é minha. Não vou te dizer que te amo, porque estaria mentindo, o amor não existe. O quê existe é apego. Vou me deixar apegar a você, Priscila, e vou me casar. E sabe esta carteira de cigarro? Vou jogá-la no lixo! Não coloco um maldito deste na boca, muito menos pasta-base. Não quero. Nem conhaque. Cadê a garrafa? Vou jogá-la fora. Pronto, joguei. Estou limpo. Cigarro nenhum vai estourar o meu pulmão, cachaça nenhuma vai desgraçar o meu fígado. Também não quero mais saber de jogo. Daqui para frente serei um homem de bem, bonzinho. Você vai me querer mesmo assim, Priscila? Bonzinho?
– Já te disse, meu amor. Eu quero você do jeito que for...
Glauber da Rocha.
 glauberdarocha@otmail.com

A Literatura Brasileira na Blogosfera 3 - Fabrício Carpinejar.


* Para ler a postagem anterior deste assunto "A Literatura Brasileira na Blogosfera", vá em "Literatura na Blogosfera 2 - Ana Maria Gonçalves."


De todos os escritores que falam sobre a experiência que tiveram com a blogosfera, o que mais me impressionou de maneira positiva foi Fabrício Carpinejar. Ao contrário de muitos, que adoram reclamar da falta de leitores e principalmente de dinheiro – sim, literatura não dá dinheiro nem leitores, o que ela dá é um pouco de dinheiro (e isso se o escritor tiver muita, mas muita sorte mesmo) e um pouco de leitores (aqui o mesmo procede) – ele, Fabrício Carpinejar, apenas relatou de maneira realista mas poética o que é a blogosfera para o escritor numa carta que ele escreveu para O Estado de São Paulo.
Eu gostaria de cometer o pecado de transpô-la por inteira aqui, mas ante à tentação, resisto: não posso dar ao leitor tudo de mão beijada. A carta – digo carta porque o texto leva o título de “Epístola aos Blogueiros”, mas poderia ser chamado crônica, ou conto, se quiser – fala exatamente como é a blogosfera para o escritor. E, assim como Paulo falava para os líderes das comunidades primitivas da cristandade – líderes este que ele formou, com a ajuda de Cristo, segundo a Bíblia – Fabrício passa uma mensagem de fé, onde a perseverança é exaltada.
Para Fabrício, o blog é a verdadeira prova para um escritor. Quer saber se você realmente tem vocação para a Literatura? Use o blog enquanto meio de divulgação de sua arte. Se no fim das contas você não conseguir nada com ele, e continuar escrevendo, parabéns: a sua vocação é essa mesma, a de escrever. Pois, o blog, para o escritor, é a sua preparação. Ou melhor: é o seu “Quarenta dias no Deserto”. Veja bem: quarenta dias no deserto, e não o Calvário. Pois, é somente depois do deserto que vem o Calvário, assim como é somente depois do Calvário que vem a Glória. Em outras palavras: quer ser ainda escritor?
Tudo leva a crer que, para um escritor é melhor o Cálvario que o Deserto: no primeiro ao menos há uma multidão em volta. Já no segundo, não há ninguém. O escritor monta o blog, recebe uma injeção de ânimo maior do que os prêmios em certos concursos, acredita que essa ferramenta foi feita para ele, capricha, dá o melhor, revisa e revisa, crente de que agora sim a fama chegará. Mas, posta um texto, posta outro, espera por um comentário, e passa um mês, e passa outro, e nada! É a solidão completa. A vontade de desistir. A fraqueza ganhando proporção. O Davi que virou Golias. O Golias que fica muito maior do que Davi.
Aqui, o escritor pode ter mais de dez anos de escrita, mais de dez anos sonhando com a carreira sólida enquanto escritor: se ele não nasceu para isso, irá desistir. E, se não desistir, ao menos aprende que o escritor deve escrever meramente pelo prazer da escrita, nada mais. Se quem escreve para ser famoso, se alguém escreve para ser rico, é aqui que ele saberá qual é o verdadeiro sentido da literatura. E a sua regra: escreva, sem esperar nada em troca. O resto, é literatura, ou melhor: conseqüência. Ou melhor, o Calvário.
Sim, porque depois da solidão, da angústia do anonimato, vem a evidência para quem não desiste, para quem melhora, para quem revê. E na evidência, impossível é agradar a todos. Nem Cristo que é Cristo conseguiu tal proeza. Então, vem a humilhação, a injustiça, a zombaria, os cuspes, os acoites. As críticas, sim as críticas. Difícil é aceitar as críticas para quem não passou pelo deserto. Fabrício sofrê-las-á. Ninguém está imune, inclusive ele. Pois, o seu convencionalismo e o seu dogmatismo pode até agradar a geração de críticos atual, que vê o poeta metafísico como o poeta dos poetas. Mas não agradará o céptico, o niilista, o sujeito que fica com raiva diante de alguém que tem tanta certeza de que o Paraíso existe, e que há um Senhor regendo todas as coisas.
Aliás, é incrível como essa geração de críticos literários prestam um culto sagrado à Metafísica. Quem faz isso reza, não pensa. Todo e qualquer filósofo sabe muito bem que a Metafísica não foi feita para admirá-la, mas para colocá-la à prova. Metafísica é tortura. E outra: os críticos literários desta geração precisam começar a entender que o conhecimento metafísico não é o saber dos saberes. Eles olham para Heidegger e dizem: nossa, que mistério!, e logo o colocam acima de alguém que inventou a internet, por exemplo. Deus do céu, que povo kantiano anterior a Kant!
O homem não é apenas metafísico: é social, é erótico, é lúdico, é trabalhador, e etc, e etc. Há muita moral num pagão que o metafísico sonha. Você verá que Caeiros não era Mestre à toa, inclusive de seu próprio criador, um metafísico por excelência: enquanto Caeiros, pagão, vivia em harmonia consigo mesmo e com a Natureza, numa felicidade e beatitude fora do comum, Fernando Pessoa foi um homem isolado, triste, de poucos amores e poucos amigos. Portanto, críticos desta geração, é bom parar com essa história de colocar os poetas metafísicos no altar: sejam pois inteligentes, Deus do Céu!
Outro tipo de crítica que Fabrício pode vir a sofrer é quanto ao caráter auto-biográfico de sua obra. A matéria de sua poesia é a vida dele, no fim das contas. É pelo menos o que predomina. A memória e seu fluxo são as seivas de seus poemas, o seu verbo. Fica nítida a impressão de que ele, seu pai e sua mãe vivem as normas celestiais aqui na terra. Paira sobre eles uma espiritualidade espiritista, onde o amor, a caridade, a fé, a humildade são tratados com um respeito demasiadamente cauteloso: violar essas dimensões é uma falta grave, uma transgressão demasiadamente cruel, coisa de gente que não tem religião. Se alguém afirmar que a religião só atrapalha a vida de um homem, eles são obrigados a protestar contra, ainda que Fabrício seja obrigado a ficar sempre no último lugar da fila e suportar calado a ordem do cobrador de ônibus de que é preciso dar mais passos à frente, mesmo que não os haja...
Fora o conteúdo, agora Carpinejar é imune à crítica. Seu estilo, isto é, forma, é algo conquistado com muito esmero. Certa vez E. Levinás disse que para um texto ficar bom é preciso afiá-lo como se afia uma lâmina ao ponto de fazê-la sumir, desaparecer. Carpinejar fala que para um poema nascer é preciso: “desbastar o poema para que só fique o essencial. O verso é como uma escultura: o rosto está lá dentro, sendo preciso para descobri-lo extraindo pedra.”
Poesia não é colocar uma frase debaixo da outra, sabe Fabrício. E isso ele deve ter aprendido muito bem com seu pai e sua mãe, grande poeta e grande poetiza. O pai de Fabrício é nada mais nada menos que Carlos Nejar. E sua mãe, Maria Carpi. Da junção desses dois sobrenomes que surgiu o seu: Carpinejar. Foi ele mesmo quem fez essa união. Ver o pai e a mãe juntos é a vontade de todo bom filho...
No seu trabalho poético, Fabrício procura sempre a metáfora, seja na poesia, seja na crônica. É sempre a parábola indo em direção à frase metafórica, sem esperar o décimo quarto verso para fechar com chave de ouro. Bom poeta, bom cronista. Das crônicas, vale a pena ler “Do lado ou de Frente?”, que fala sobre o amor, sobre casais em restaurantes. Diz ele: restaurante é um observatório do amor.”
Outra boa crônica é a Inundação, cujo tema é a morte. Fora dos trilhos, uma crônica de memórias de sua infância. Boca mole, crônica que fala do relacionamento homem mulher. Um carro casado, outra crônica que fala de relacionamento, mas com ênfase na intimidade entre os casais. Dois canudos, onde ele defende uma tese por qual motivo nós, seres inteligentes, sempre tomamos refrigerante com dois canudos e nunca um apenas, que basta. E há também as crônicas que ele dedica ao seu filho Vicente. Já as poesias, são muitas. Do livro “As solas do Sol”, onde o poeta-personagem chama-se Avalor, há três no seu blog: “Primeira Colina – poema 8” Oitava colina – poema 1” e “Nona Colina – poema 3.
Há também, em seu blog, um poema do livro de poesias “Um terno de pássaros ao sul”, outro do livro “Terceira sede”; do “Biografias de uma árvore”, e do livro “Cinco Marias.” É acessar o blog do poeta Carpinejar e conferir a Carpintanejaria poética desde poeta ora chamado de Colecionador de Silêncios, ora de Poeta da Essencialidade, de Puxador de Sinos, de Novo Velho Poeta e entre tantos outros nomes.

A Literatura Brasileira na Blogosfera.

Um dos meus primeiros contatos com a literatura na blogosfera foi por meio do blog “O Biscoito Fino e a Massa”, de Idelber Avelar. Num de seus post’s, ele explica a grande diferença entre o escritor-blogueiro e o blogueiro-escritor, que são completamente diferentes. Enquanto o primeiro já era escritor antes de ter um blog, e só montou um como meio de divulgação de sua arte, o segundo acabou tornado-se um escritor após a montagem do seu – muitos desses, ao se darem conta, descobriram-se muito talentosos para escrita, já outros, tiveram que aprender escrever caso quisessem sobreviver na blogosfera.Antes de ler este post, o meu pré-conceito com os escritores de blog era a de que eles ou eram adolescentes publicando seus diários ou jovens querendo ganhar a fama por meio da escrita. Era essa a minha opinião, mudada após a leitura do artigo postado por Idelber Avelar em seu “O Biscoito Fino e a Massa.” Por outro lado, tal leitura fora apenas um passo para a mudança de meu conceito quanto aos escritores da blogosfera: o outro foi conferir na prática, saber se esses escritores eram talentosos mesmo ou pessoas que não conseguiram publicar seus livros nas grandes editoras e estavam apelando para o blog.
Com isso, sem querer, acabei me deparando com um universo cheio de questões, e portanto, demasiadamente relevante e pertinente para o futuro da Literatura pós-blog ou a Literatura na Era da Informática. Questões como livro impresso versus livros digitais (e-book), direitos autorais e todas essas perguntas que se faziam quando no inicio da Literatura no Universo da Internet, hoje já são quase que respondidas em forma definitiva. A cada dia que passa, no universo virtual das Letras, surgem novas questões, novas possibilidades, novos horizontes. De fato, é um mundo a ser explorado e pensado, e não é à toa que o filósofo Pierre Lévy já fazia uma reflexão sobre a Internet na sociedade, analisando o mundo na Era da Informática e abstraindo conceitos e apontando diretrizes para uma ética, uma política e o futuro da ciência e da filosofia.Mas, vamos aos poucos. Primeiro surgiu-me a necessidade de averiguar se esses escritores eram bons ou não, se eles estavam ali porque não conseguiram uma editora e estavam dando o tiro de misericórdia. Anotei os nomes dos escritores indicados no blog Biscoito Fino e a Massa: Santiago Nazarián, Ana Maria Gonçalves, Fabrício Carpinejar, Marcelino Freire, Ivana Arruda Freire, Ivana Arruda Leite, Cintia Moscovichi, DanielPellizari, Daniel Galera, Daniela Abade e entre outros.
* Para ver a próxima postagem sobre este assunto "A Literatura Brasileira na Blogosfera", vá em "Literatura na Blogosfera 1 - Santiago Nazarián"

Santiago Nazarian.


* Para ver a postagem anterior deste assunto "Literatura Brasileira na Blogsfera", vá "A Literatura na Blogosfera - Introdução".

O primeiro que encontrei foi Santiago Nazarian. Apesar de jovem, que apesar?! ele escreve como todo escritor deve escrever: o que quer, o que sente, o que deve ser escrito. Seguindo esta intuição própria dos escritores que vêm para ficar, Santiago já escreveu quatro romances, todos publicados pela Editora Record. São eles: O Prédio, o Tédio e o Menino Cego; Mastigando Humanos, Feriado de Mim Mesmo, a Morte sem Nome, e Olívio. Em seu blog, Amor & Hemácias – título bem ao seu estilo e portanto coerente – ele expõe trechos de quatro romances.
O primeiro dele, o surpreendente Mastigando Humanos, conta uma história que aponta para diversas interpretações. O personagem principal é um jacaré. Foi o momento que eu acabei achando um escritor parecido comigo: eu tenho um romance que o personagem principal é um lobo! Mas não só isso. Me identifiquei com a sua linguagem ágil, veloz, envolvendo o leitor em imagens, sons, gostos, e críticas atrás de críticas. De vez em quando, lembra Rimbaud. Só que um Rimbaud atual, que fala de certo símbolos presentes apenas em nossa época, como a camisa do Ramones que Santiago Nazarian faz referência. Um Rimbaud decidido a escrever o que quer escrever, dane-se o resto, o amanhã é depois.
Digo isto porque há muita injustiça contra os jovens escritores. Ninguém pode dizer que a obra de Guimarães Rosa é melhor que a de João Antônio porque o primeiro era mais maduro e o segundo, jovem. Não. Cada qual tem o seu valor pessoal. O que seria uma lástima era ver João Antônio escrever como um velho e Guimarães Rosa escrever como um jovem. Portanto, cada qual tem o seu valor, individual. Agora, você já pensou se João Antônio não publicasse àqueles seus contos de Malagueta, Perus e Bacanaço? E se Álvaro de Azevedo não nos desse a Lira de Vinte Anos? Caso por um motivo ou por outro ele continuasse vivo e mudado de pensamento e de Escola?Não sei se fui claro. Mas o que quero dizer é isso: o jovem escritor, quando talentoso, deve ser apreciado. Não importa se ele não pensa “certo”, se ele está numa Escola que não concordamos, o que importa é a sua arte e ponto. Em “Feriado de Mim Mesmo”, outro texto elaborado por jovem. A personagem-narrador, que parece ser o alter-ego de Santiago, não tem vergonha de relatar a solidão que sente no Dia dos Namorados. Um velho, quem sabe, não faria isso: falaria de solidão, mas não a dele. Ou falaria a dele mas com justificativas, ornamentos, rodeios. Coisa que Santiago não faz: fala direto, do seu jeito, o que sente, o que pensa, e não está nem aí para a crítica, e isto é fundamental.
Já no romance “A Morte sem Nome”, a coragem que Rubem Fonseca não teve, pelo fato de passar a vida inteira falando eu sou espada, eu sou espada, eu sou espada. Eu gosto do Rubem, gosto do Nelson Rodrigues, mas não gosto da idéia fixa. Hoje o novo conceito de inteligência demonstra que quem guarda muito conhecimento, quem fixa muita coisa, é na verdade um burro que empaca. O inteligente não é aquele que se decide para a vida inteira. O inteligente é aquele que está aberto às mudanças, a rever seus conceitos, a sua postura, e movimenta-se, faz de tudo.
E o escritor inteligente faz isso. E a primeira coisa que Santiago fez foi colocar-se a baixo e a favor da arte, em prontidão, e assim, teve a coragem de escrever em primeira pessoa a história de uma personagem feminina. Santiago virou mulher, mas na arte, tal como os artistas fazem nos palcos, vivenciou o outro lado e renovou seus conceitos, o modo de ver o universo feminino.
No romance “Olívio”, o fim de um namoro por um problemazinho insignificante, onde Santiago fala de sexo, mostrando como seus personagens não têm tanta consciência do que são. Isto que é maravilhoso. Já pensou? O escritor sabe que seus personagens são de certa forma prisioneiros, mas escreve sem comentar isso: se fizesse, iria ser uma literatura chata, com personagens cheios de razões, e etc. No fim, ficamos um pouco decepcionado com a forma que as personagens vão tomando decisões. Dá um sentimento de frustração...
Mas, isso acontece porque o autor foi fiel à realidade; e se dermos ouvido e coração para tantos casos amorosos que escutamos por aí, podemos chegar até mesmo na conclusão de que o mundo não presta, que a vida é cretina.
É bom ser jovem, ler jovem. A linguagem de Santiago Nazarian é uma linguagem que vai se apropriando dos objetos, dos seres em sua volta, do pensamento. Faz isso com música, com imagem e com idéias. Excelente escritor, que, a cada ano que passa, a cada romance que publica, vêm ficando cada vez melhor e maduro. Sucesso de publico e de crítica, ler seu livro é garantia certa de uma ótima experiência estética.
* Para ver a próxima postagem da série deste assunto, vá em "Literatura na Blogosfera 2 - Ana Maria Gonçalves.
Glauber da Rocha.

A escritora Ana Maria Gonçalves e a blogosfera.


Agora vou falar de uma escritora que me fascinou deveras. O nome dela é Ana Maria Gonçalves, do blog 100 Meias Confissões de Aninha. Começou a escrever por causa do seu blog – na adolescência, assim como a maioria dos adolescentes, escreveu uma coisa ou outra, nada excepcional, nada de sonhos querendo o estrelato, e por isso não foi adiante. Foi o blog que acabou fazendo de Ana Maria Gonçalves uma escritora de peso na Literatura Brasileira de Hoje Em Dia. Primeiro, confessando uma coisa ou outra, nada de mais, para depois, com o tempo, for pegando gosto pela coisa e começar a sonhar com romances, pesquisas, e profissionalizar-se como escritora.
Quando viu, Ana Maria acabou sendo tal como esses escritores e escritoras que decidem abandonar tudo por causa da Literatura. Gente assim, só pode ir longe. E de fato, é o que todo escritor deve fazer. Porque ter duas personalidades, uma para um trabalho, e outra para o mundo das idéias, com tempo torna-se esquizofrenia. Não dá. É loucura na certa. Eu mesmo, que ainda não ganho o meu pão com a escrita, já estou para lá de louco. No fim das contas, fico sempre sozinho, que nem o Zéfiro. Quem é que gosta de conversar sobre Literatura? Um ou outro...
Ana Maria Gonçalves fez isso: abandonou a sua carreira sólida na área de publicidade, vendeu tudo o que tinha e foi para a Bahia, lugar em que ela nunca havia pisado os pés. Vão vendo a loucura. Lá ela se estabeleceu, deu três meses de “férias para si mesmo”, como diria Santiago Nazarian, e não fez outra coisa senão esquecer o mundo da vida empresarial, que é muito mais louco e absurdo que o mundo das Letras. Descansada, lançou-se à pesquisa, a fim de elaborar seus livros. Ainda na compulsão pró-ativa herdada da vida infernal, não dava folga, não sabia a hora de parar, e até hoje não sabe.Escreveu dois romances: “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim” e “Defeito de Cor”. O primeiro, e do qual falarei aqui, Ana Maria Gonçalves publicou por conta própria, e teve um retorno bem maior do que esperava. Hoje esse romance encontra-se íntegro em seu blog, e vale a pena ler: se a linguagem de Santiago Nazarian é envolvente, eletrizante, fazendo das palavras trilhos para o seu trem criativo, a linguagem utilizada por Ana Maria nesse romance é cativante, delicada, polida, sem pressa. Parece uma dessas mulheres que separa os grãos de feijão na mesa e depois de cozinhá-los e digeri-los deita-se à rede e fica pensando, satisfeita, namorando seus próprios pensamentos.
O romance tem como mote ou tema principal a questão mais austera na Literatura: o amor. Um tema que aparentemente é fácil de ser tratado – e não é à toa que quase todo mundo acredita-se poeta quando ama – mas que no entanto, quando colocado de maneira a não cair no comum, acaba tornando-se muito difícil. Eu mesmo, aliás, nunca ousei tocar nesse assunto: é colocar o título Amor lá em cima da página em branco para ter a certeza de que a primeira frase não sairá.E para falar deste tema, podemos escolher qual visão sobre o amor tomar, pois, há muitas: a machista, a religiosa, a psicanalítica, a filosófica e por aí vai, até o infinito. Ana Maria preferiu à psicanalítica, principalmente àquela que retorna aos gregos, no mito de Narciso. Como conta a lenda, este considerava-se tão bonito, mas tão bonito que um dia, após olhar-se pelo espelho do lago, caiu dentro dele e morreu afogado...
Ana começa então o seu romance com uma “cena do lago”. Não vou referir-me à Ana enquanto pessoa, mas à Ana enquanto personagem-narradora, pois é este o nome da protagonista da história que Ana Maria Gonçalves escreve. Portanto, não vou interpretar o livro como sendo uma auto-biografia, nem que ele tenha traços auto-biográficos, ou que ele seja um livro de memórias, assim como o é Infância, de Graciliano Ramos. Vou interpretá-lo como um livro de ficção, que tem um tom memorial, e que o fato de a personagem-narradora ter o mesmo nome que a escritora não quer dizer necessariamente que a Ana retratada no livro seja a Ana autora.E a personagem-narradora Ana conta que aos dois anos de idade soltou-se da mão de sua mãe e entrou no lago. Aqui, ela quer dizer algo. O quê será? Que foi quando, na desobediência, na teimosia, ela expressou aquilo que ela vinha a ser depois, na fase adulta? Ou que Ana, quando ama, joga-se sem pensar no perigo e nas conseqüências? E que quando ama, na verdade, está amando apenas a si mesmo? Não sei. É sempre muito difícil dizer qualquer coisa a respeito de seu romance, cheio de incógnitas, de nuanças, de mistérios a desvendar.Isto porque ela trabalha com mito, tanto o grego quanto o brasileiro: Ana refere-se a dois mitos nossos: o de Iemanjá, como deusa e rainha do mar, e de João da Draga, um homem que aspirava areia do leito do rio usando uma máquina, abastecendo as construções que se erguiam no vilarejo – este, coitado, enlouqueceu depois de ter “visto” Iara, e a sua máquina, funcionando sozinha, separou o rio Misericórdia em dois: o rio que se segue, e o rio que ficou parado, transformado em lago, um lago que todos chamavam de prainha, a prainha de Niterói, o qual Aninha quase afogou-se.
Esse lago ficava num vilarejo chamado Ibiá, lugar de pouso para os tropeiros de comitivas que vinha de Minas Gerais. Nesse vilarejo que Ana viveu a sua Infância, onde ela conheceu o primeiro amor, um menino de sete ou oito anos no máximo, dois a mais que ela, chamado B., que fez com ela um pacto de sangue jurando matrimônio e amor eterno. Os dois, enfim, acabam tomando caminhos diferentes. Ana vai morar em São Paulo, onde vive a adolescência, faz faculdade e casa-se, divorciando-se depois. Após essa separação, Ana muda-se de volta para Ibiá, atrás do seu primeiro amor, e ali fica esperando por ele – o enredo, em “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim”, é portanto a espera do amor.
Enquanto ela espera, vai vivendo num ciclo entre lembrar e pensar a sua vida, escrever cartas de amor a B. – a qual ela não endereça e nem coloca no correio, porque nem sabe qual endereço – e viver no pequeno vilarejo, misturando-se com o povo, conhecendo gente. Em especial, conhece Zé, e faz uma grande amizade, porque este se parece muito com ela, e uma narcisista, afinal de contas, só pode fazer amizade com quem se parece muito: o Zé, assim como ela, espera por um amor, por uma mulher, especificamente, chamada Lorerei, ou melhor, Mercedes, que era, assim como Zé, artista de circo. O romance dos dois não deu certo, e agora Zé espera por ela, que deve estar lá do outro lado do Continente, do Oceano.Zé é considerado pelo resto do vilarejo como um “doido”. É “doido” porque vive isolado – é narcisista demais também – e faz poesias. Será que os poetas são narcisistas? Não sei, parece que sim. Ou são altruístas demais para sofrerem tanto com uma coisa que não dá privilégio algum? Zé é doido que nem Ana. Talvez, Ana só não é considerada doida porque trabalha, porque ainda se esforça em conviver com os outros, como por exemplo, a dona Isabel, uma espécie de secretária dela.Em suas lembranças e memórias, logo fica nítido a sua personalidade: platônica, romântica, individualista, propensa à solidão.
Numa palavra: a mulher que não conseguiu deixar de ser menina: a eterna princesa à espera do príncipe encantado, da vida encantada, do Perfeito, do Belo. O problema é que nunca as coisas são como ela quer: seu primeiro beijo foi roubado por alguém completamente diferente dela, um moleque bagunceiro, popular, líder de classe, burro. Teve nojo, raiva, revoltou-se. Não porque M. era tudo isso, uma vez que, no final das contas, em seu íntimo, ela gostava. Mas pelo simples fato de que ele não a avisou que lhe beijaria... – se isso aconteceu, não sei: o que sei é que eu nunca avisei nenhuma menina que iria lhe beijar. Ninguém avisa. Ninguém diz: agora vou te beijar... E Ana sabe disto. Contudo, ela queria ser avisada... E aqui está a graça de sua personalidade.
Perdeu a virgindade com C., o seu professor de Matemática. Outra metáfora? E foi nele quem colocou seus primeiros chifres... Mais outra? Aliás, Ana adora metáforas, assim como adora também fazer observações curiosas, como a que aparece logo no início do romance: “as coisas importantes que nos acontecem dependem apenas de um derradeiro segundo, nem mais, nem menos.” Fala também sobre a terça-feira, que não é um dia especial: não é dia para começar nada, ou para terminar algo. Não é dia para casar, nem para parar de fumar ou algo do tipo. Terça feira é o dia mais insignificante da semana...
Ana gosta de usar a metáfora dos trapezistas, e coloca outra observação curiosa: a maioria deles são da mesma família: pai, mãe, irmãos, irmãs. É preciso muita confiança para jogar-se ao outro. Amor é isso. Contudo, Ana joga-se ao amor sem confiar. Não lhe interessa se a pessoa do outro lado do trapézio irá lhe apanhar com a mão forte, segura... Essas e outras curiosidades vão povoando o seu romance, e sempre nos lugares certo, quando o texto pede. Eu poderia falar mais aqui, mas perderia a graça para o possível leitor.Depois que o professor começou a traçar planos para a sua vida, aonde ela teria de deixar de seguir seus sonhos, abriu mão deste. Queria fazer faculdade, e logo após o fim deste namoro, encontramos Ana morando numa república, dividindo o apartamento com outras garotas. É quando descobre definitivamente que prefere viver isolada, que tem gosto pela solidão. Já as outras: sempre animadas, divertidas, promovendo festas. Finalmente, quando ela viu que não dava mais para conviver com muitas pessoas a sua volta, resolveu morar sozinha. Na véspera de sua partida, num barzinho onde foram fazer a festa de despedida, Ana conhece aquele que seria o seu futuro marido, chamado R – se me permite a brincadeira, Ana, no sentido bonito da expressão, deitou-se com o alfabeto inteiro...
O casamento, é claro, não dá certo, e de repente vemos Ana voltando para a terra de sua Infância, onde amou B. Convive com os moradores, interessa-se pelas histórias e estórias do povo, relata os costumes, o sincretismo religioso de Ibá, as supertições, como por exemplo a de que quando um padre e duas freiras rezam durante a travessia da valsa, é azar, pois foi assim num Dois de Junho, quando um barco naufragou e morreu muitas pessoas: nesse dia, havia um padre e duas freiras rezando.Outro mito, ou lenda, é a do peixe-boto. Ana conhece um pessoalmente! Chama-se J. Elegante, educado, do tipo que dá flores. Queria Ana. Mas a dona Isabel, sua secretária, avisou-lhe: é um “boto”, um homem-peixe, que engana as mocinhas inocentes, tirando-lhes a virgindade, engravidando-as, para depois sumir, ou, porque é rico, pagando para elas fazerem o aborto.
No fim do romance, B não aparece. Ela não fica com Zé, não fica com o “boto”, não com R., apesar de ter “casado” com ele. Foi uma relação limpa, ninguém saiu ferido – aqui a personagem-narradora demonstra a sua maturidade – que teve inicio, meio e fim. Fica sozinha, como essas tias solteiras, como um monte de tias solteiras que tem nessa cidade e vivem deixando Santo Antônio de cabeça para baixo, a fim de que este arrumem logo um casamento para elas. Ana acaba só, como sempre gostou de viver. Ana acaba só porque talvez não acredita no amor. O amor, na verdade, assim como para Machado de Assis, só é possível na Infância. Bentinho só amor Capitu, Ana só amou B.
Glauber da Rocha.

Prosa e Verso para o meu terrível Regresso.

A literatura séria me despreza,
não sou digno de desatar as chinelas de Guimarães Rosa.

Ainda que a produnfidade de meus poemas
atingisse o céu da boca deles,
não me vomitariam.

Eu sou um desses que pega a estrada,
que renega absolutamente a vida em torno do lucro,
o vagabundo que ri faceiramente da cara do patrão,
a voz de uma geração de jovens descontentes...

Chega de falar em versos. Vamos para a prosa, para um ano atrás. Era véspera de Carnaval. Eu cheguei em casa mais revoltado do que nunca. Falei: eu vou-me embora. Para onde?, perguntaram-me com olhos aflitos. Não sei. Eu vou para o mundo. E para o mundo fui, com uma pequena mochila nas costas.
É muito difícil para um poeta filósofo manter o equilibrio aqui no Brasil. O venveno da Filosofia quando entra na veia humana mata toda a inocência.
Você acaba sabendo que a maioria das coisas que você aprendeu na vida não é verdade, que a escola te enganou, que a igreja te enganou, que a televisão te enganou, e ainda você tem que saber superar tudo isso.
Você aprende que seu país é um país sub-desenvolvido, enquanto que hora ou outra um país desenvolvido é mais pobre que o nosso.
Você aprende que tem que ter desapego material e com isso todo mundo passa em cima de você e leva tudo o que é teu.
Você aprende dizer amém enquanto quem te ensinou fala não vem que não tem...
Eu coloquei a mochila nas costas sim, e saí sem rumo, em direção ao Mundo, e apenas pela manhã, quando o sol raiou, e já cansado de tanto andar pelo encostamento da rodovia, pararam para me dar carona.
Entrei no carro, olhei para o sol, e disse: a minha alegria brilha agora mais que os raios da aurora...
Senti a liberdade, fiz novos amigos, tomei banho de rio, dormi em praças, pulei Carnaval, transei, fumei, curti.
Guimarães Rosa jamais teria feito isto.
Machado de Assis nem pensar.
Bukovisky quase.
Kerouac sim.
Rimbaud, extrapolou: atravessou a França à pé, alcançou o mar da Àfrica, foi e voltou.
Por que voltou?Para passar raiva, atenuar seu desprezo pelos fracos. Coisa que não suportou, e voltou para a África, para nunca mais voltar...

E por que eu voltei?!
Agora vivo que nem um Beckett.
Agora vivo que nem um Joyce.
Ando de um lado para outro, tentando me adaptar...
Peso na balança: há mais contras do que prós.
Lá tem a estrada, e tem o verde, e tem os rios, e tem as mocinhas inocentes.
Aqui só tem conversa fiada.
Na rodovia, se um homem querer lhe matar, é só matá-lo: quem vai te acusar?
Já aqui o melhor é morrer...

Deus do céu, como queria ser um homem equilibrado!
Ter ganâncias, querer ser rico à todo jeito, comprar carro importado!
Não ter o mínimo de reflexão sobre a verdade.
Essas verdades que de tanto ser repetidas, acabaram se fixando.
Se fixando como as viseiras sendo colocadas nos burros...

Jesus Cristo, beba um trago do vinho no gargalho,
seja meu amigo e fica bêbado uma vez comigo,
diga que o Senhor não é nenhum mágico,
que prefere dar a vida dura a seu filhos...

Seja franco e direto
Fala que seu caminho é de pedras e espinhos...

Corta! Corta! Corta!
Corta o ritmo da poesia.Veja a cena. Mãe e filhos em volta, na frente da merda da tevê. Chega o filho. Bêbado. E diz, estou indo embora. Para onde, meu filho? Para o Mundo, responde ele. E vai. Vai embora para o Mundo. Então, alguém pergunta: para onde foi o teu filho? A mãe responde: para o Mundo...

Glauber da Rocha.